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junho 28, 2017
A cultura dos 10% mais ricos por Marcus Faustini, O Globo
A cultura dos 10% mais ricos
Coluna de Marcus Faustini originalmente publicada no jornal O Globo em 27 de junho de 2017.
Os governos só buscam diminuir privilégios quando são pressionados
A Warwick Commission on the Future of Cultural Value tornou pública uma pesquisa que mexeu com a comunidade artística e cultural da Inglaterra e as esferas de governo que trabalham com fomento às artes e direitos culturais por lá. O recado é direto: apesar de ter uma extensa política de apoio à produção artística, o financiamento público está beneficiando principalmente obras e ações para plateias que pertencem às camadas mais ricas e com menos diversidade étnica da sociedade inglesa. Se for considerada, a pesquisa pode criar uma mudança de rumo radical na história das políticas de arte e cultura.
Em 2011, as manifestações urbanas protagonizadas por jovens acenderam a luz vermelha para o governo britânico e para aqueles que trabalham no campo das artes. Uma das respostas foi tornar o envolvimento de jovens do entorno um dos eixos centrais das propostas de ações de instituições de arte e cultura que baseiam seus trabalhos em regiões com habitações populares. Instituições que possuíam essa missão em seus programas acentuaram práticas nesse sentido. Passados alguns anos, o resultado é visível: a participação de jovens nos espaços de decisão artística e de gestão aumentou em várias organizações. E jovens começaram a ocupar o lugar de referência em diversas situações. Seshie Henry, do I am Next, é dos exemplos. Realizou uma importante mobilização de jovens da cena alternativa do hip hop em apoio às vítimas do incêndio recente na Grenfell Tower
Já a atual pesquisa aponta que o “dinheiro das artes está financiando projetos para um público de esferas de elites, apenas”. Tanto as escolhas artísticas até o modo de circulação foram colocadas em xeque com o resultado da pesquisa. O dinheiro público acaba beneficiando apenas os 10% mais ricos da população, mantendo desigualdades, diminuindo a capacidade que a cultura possui de ser um espaço de diversidade e concentrando renda em determinados grupos. No teatro, na música, nas artes visuais é gritante, como aponta a pesquisa, a concentração da audiência nesses segmentos. Nenhuma sociedade se desenvolve com esse tipo de privilégio, nem sua indústria criativa, tampouco seu equilíbrio de direitos e justiça social.
O debate, de pouco fácil digestão para quem está confortável num determinado lugar da cadeia de produção e redes de criação, foi colocado para inspirar mudanças. É o tipo de escolha artística e estética que é feita que faz isso acontecer? É o modo como circulam as criações e ações? É o valor do ingresso? É algo que já está estruturado nas entranhas culturais e que leva a essas escolhas? São questões radicais que permeiam neste momento as diversas comunidades culturais inglesas.
Qualquer mudança naquilo que é feito no campo da arte e da cultura deve ir no ponto central: seu sistema. Mesmo que esse não seja claro para muitos, ele existe e interfere na experiência que temos com as expressões de arte e cultura. Um sistema que envolve financiadores, distribuição, legitimação, reconhecimento, visibilidade e determina invisibilidades, por exemplo. Pensar a audiência como um dos elementos desse sistema é uma mudança importante que pode ajudar a revelar como desigualdades foram sendo naturalizadas. Para quem usa como exemplo a cultura europeia sempre que pretende diminuir o que acontece no Brasil, não vale dizer que desta vez a discussão não importa. O debate sobre a audiência é um dos mais radicais em curso em grandes cidades que são referência na indústria criativa.
O britânico Paul Heritage, conhecido aqui no Brasil pelo constante trabalho de intercâmbio entre Inglaterra e Brasil, liderando a organização People's Palace Project, avalia: “É um momento super rico nas conversas sobre arte no Reino Unido. Pesquisas apoiadas pelo governo britânico sobre o valor de cultura, como o Warwick Commission, mostram que há uma nova tendência no ar. Diante dos rasgos do tecido social, a arte tem que reencontrar seu papel fundamental que vai muito além do valor econômico das indústrias criativas”.
É preciso um levante de ideias e pressões sobre todas as esferas de governos para manter a cultura na agenda da diversidade e da diminuição das desigualdades. Os governos só buscam diminuir privilégios quando são pressionados. Quando eles falham, aqueles que fazem pesquisas e criam ideias possuem um papel decisivo para manter a diversidade e a diminuição das desigualdades no horizonte do debate público. Por aqui, o atual ataque do governo Temer, que reduz o Ministério da Cultura a um escritório de facilitações de negócios do seu núcleo duro de governo, não pode deixar o debate da cultura amuado, como se não restasse mais esperança. É preciso botar na agenda da sociedade brasileira, outra vez, o debate sobre a cultura.