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junho 26, 2017
A arte foi ao banheiro: crise ou solução? por Luiz Camillo Osorio, Prêmio Pipa
A arte foi ao banheiro: crise ou solução?
Texto de Luiz Camillo Osorio originalmente publicado no site do Prêmio Pipa em 23 de junho de 2017.
Mensalmente, o colunista e curador do Instituto PIPA Luiz Camillo Osorio escreve um texto exclusivo para o site. Este mês, Camillo fala sobre o trabalho “America”, de Maurizio Cattelan, uma privada de ouro maciço que pode ser vista – e usada– no Guggenheim, Nova York. A partir de uma análise da obra, que mistura luxo e lixo, o texto levanta uma reflexão sobre o lugar da arte e seu poder político em um cenário em que ela é, de um lado, capturada pelo mercado e, do outro, institucionalizada, perdendo a força e a acidez crítica que se propõe a ter.
America (2017) de Maurizio Cattelan pode ser considerado um site-specific. Esta peça foi apresentada recentemente no Guggenheim de Nova York após ser adquirida pela instituição. Trata-se de uma privada de ouro maciço de 18 quilates, colocada em um dos banheiros do museu, cujo uso é individual, situado na famosa rampa-galeria de Frank Lloyd Wright. Para vê-la e usá-la -sim, esta privada de ouro pode ser usada sem restrições -bastava entrar na fila e aguardar a sua vez. Importante frisar que é a primeira peça do artista italiano depois do período “sabático” sem realizar qualquer obra desde sua retrospectiva espetacular há cinco anos no mesmo museu.
Uma coisa é certa, Cattelan é um dos artistas mais críticos da cena contemporânea. E a palavra crítica, aqui, carrega toda a ambiguidade inerente ao momento em que vivemos, ao sentido desta palavra hoje e ao modo como a arte foi capturada pelo mercado e pela institucionalidade imediata. É aí de dentro desta captura que se pode esperar algum posicionamento crítico, algum ruído, alguma inserção não acomodada ao discurso instituído. A não acomodação paradoxalmente traz consigo a captura inevitável. Mesmo o engajamento político explícito está completamente inserido (e acomodado) – o que não tira do engajamento sua razão de ser, mas que, indiscutivelmente, reduz bastante a intensidade da sua inadequação, ou seja, da sua potência crítica.
Como escapar? O que cabe à arte enquanto potência crítica dada sua inserção institucional? Qual o sentido de uma obra como America para esta discussão? Desde o ensaio de 1962 de Adorno, intitulado justamente “Engajamento”, que esta questão das formas como a arte resiste à instrumentalização e ao consumo vem sendo colocada dentro da perspectiva de sua articulação com a própria autonomia. Autonomia entendida não como isolamento ou esteticismo, mas enquanto indeterminação de sentido, de defesa de certa opacidade comunicativa.
Há que se deslocar as formas de identificação e de circulação da arte. Ou seja, há uma lógica inerente ao campo da arte, um trabalho de construção de sentido que se dá no interior de um jogo de linguagem, de uma historicidade e de uma institucionalidade que atravessam as formas de resistência possíveis para a arte. Usando outra terminologia mais atual, deslocar e pôr em tensão uma arte política e uma política da arte. Como sabemos, pode-se fazer política deixando a arte de lado; entretanto, a pergunta que queremos fazer é sobre a capacidade política da arte. Feita a pergunta, há que se preservar sempre o espaço para que se faça arte sem uma preocupação política específica, para que se mantenha a dimensão solitária de um Morandi isolado entre os anos 1930 e 1960 em Bolonha em uma casa com suas irmãs e suas garrafinhas. Esta possibilidade, por que não, também é política à sua maneira, diferente da que estamos querendo discutir aqui.
O interesse em ressaltar a política da arte é o de afirmar que fazer arte deve ser também uma forma de intervenção no real, de desnaturalizar a realidade, de torná-la um campo de conflitos e de desentendimentos. E de encantamento também. Isso significa que esta intervenção deve produzir uma experiência sensível heterogênea, nos fazer pensar de dentro de um bloco de sensações e afecções sempre indefinidos e indeterminados. Se a arte para Da Vinci era cosa mentale, afirmava-se como atividade do espírito, hoje cabe ressaltar, ou melhor, lembrar, que não há espírito sem corpo, que fazemos e experienciamos arte dentro de um mundo singular e imanente.
E a privada de ouro com tudo isso? Ela mistura o lixo e o luxo, a arte e a não-arte, o corpo e a obra, o fetiche glamoroso dos 18 quilates e o comunismo de uma boa mijada (ou derivados). Há exatos 100 anos Marcel Duchamp criava a sua fonte. Um mictório qualquer, comprado em uma loja de utilidades domésticas, virado de ponta-cabeça, posto sobre um pedestal e assinado com o pseudônimo Richard Mutt. O impossível de um objeto qualquer, não feito pela mão do artista virtuoso, mas pelo gesto da ironia genial, ganhava o lugar da arte.
Para isso, este “objeto qualquer” teve que começar como sendo não-arte. Explicando-me melhor: ao enviar a peça ao Salão dos Artistas Independentes de Nova York de 1917 e com sua recusa pela comissão organizadora (da qual Duchamp fazia parte), o mictório virara não-arte. A defesa do “trabalho” do artista Richard Mutt em uma carta assinada e publicada por Duchamp, assumia o sentido poético deste gesto e abria-se para os “ready-made” a possibilidade de arte. Nada disso acontece do nada. O “mictório-fonte” de Duchamp só entrou para a história da arte porque havia atrás dele uma “tradição” vanguardista que remontava aos salões de recusados dos impressionistas, empurrando as possibilidades da arte para fora de suas determinações poéticas convencionais. Uma histórica de recusas foi viabilizando o gesto radical de Duchamp e a compreensão de um fazer arte que incorpora suas próprias condições de produção e circulação. O artista levando ao limite a consciência dos dispositivos que atravessam os modos de fazer e de ver as obras de arte. Entre a fonte do Duchamp e um mictório idêntico num banheiro, insere-se o gesto artístico que faz aparecer a ironia – que não aparece quando usado na sua função original. Perceber a ironia é ver o que não se evidencia materialmente, mas que se revela dentro de determinadas circunstâncias.
Para o poeta romântico Friedrich Schlegel a “ironia é a forma do paradoxo”, ou seja, é o que deixa equacionar a reflexividade e o humor, o consciente e o inconsciente. Cattelan, na sua bufonaria estratégica, encarna o paradoxo de se fazer arte quando tudo parece reduzido a preço e mesmice. Cem anos depois de Duchamp, devolver a arte para o banheiro é assumir o paradoxo de ser ao mesmo tempo uma atividade de suprema liberdade e de máxima captura. Entre os 18 quilates de ouro maciço e a urina ou as fezes que se despejam nela, a “arte-privada” busca desesperadamente alguma linha de fuga a fim de readquirir alguma potência. O mercado e o museu com sua voracidade cínica tratam de apertar a descarga e manter tudo limpo e lustroso. Não tratei do título, América. Não precisa, afinal Duchamp já havia escrito em sua carta em defesa de Richard Mutt, que privadas e pontes eram o que de melhor a América havia produzido em termos de obra de arte.
Luiz Camillo Osorio é curador do Instituto PIPA e um dos idealizadores do Prêmio. É professor e atual diretor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Foi curador do MAM-Rio entre 2009 e 2015. Acesse a Coluna do Camillo e leia textos exclusivos do curador do Instituto PIPA.