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junho 26, 2017
"As imagens não são apenas coisas para representar". Entrevista com Georges Didi-Huberman por Verónica Engler, IHU - Página 12
"As imagens não são apenas coisas para representar". Entrevista com Georges Didi-Huberman.
Entrevista de Verónica Engler, traduzida por André Langer, publicada na revista on-line do Instituto Humanitas Unisinos em 20 de junho, do original publicado no jornal argentino Página 12 em 19 de junho de 2017.
O filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman – um dos principais pensadores do nosso tempo – está desde a semana passada trabalhando em tempo integral em Buenos Aires na montagem da exposição Sublevações (Soulèvements), da qual é curador, no Centro de Arte Contemporânea do Museu da Universidade Nacional de Três de Fevereiro (Muntref). A exposição baseia-se em um trabalho histórico e teórico que Didi-Huberman vem realizando há anos, e que se inspira em uma série de livros intitulados L’oeil de l’histoire (O olho da história).
Composta por mais de 200 obras (de Marcel Duchamp, Man Ray, Tina Modotti e Henri Cartier-Bresson, entre outros, além dos locais Abraham Regino Vigo, Adriana Lestido, León Ferrari e Eduardo Longoni), Sublevações – que já foi exposto em Paris e Barcelona – provavelmente se transformará em um dos fenômenos culturais do ano no país.
Há muitas décadas, este ensaísta de renome internacional vem refletindo sobre a imagem e a sua dimensão política, a história, a arte, a memória e também sobre esse campo fecundo de estudos que é a história da arte. Pertencente a uma linhagem de pensadores disruptivos como o filósofo Walter Benjamin e os historiadores da arte Aby Warburg e Carl Einstein, a proposta de Didi-Huberman, assim como a de seus predecessores, também se dirige contra uma determinada concepção de história, positivista, evolucionista e teleológica.
“Criar a história com os próprios detritos da história”, incitava Benjamin em seu Livro das Passagens. Trata-se de uma proposta epistemológica que assume que a história (como objeto da disciplina) não é uma coisa fixa, nem mesmo um simples processo contínuo e que a história (como disciplina) não é um saber estático nem um relato causal. Desta forma, o passado deixa de ser um fato objetivo e transforma-se em um fato de memória. Então, para desmontar a continuidade das coisas proposta pela construção epistêmica convencional, a alternativa é a “montagem”, um conceito chave para entender o pensamento de Didi-Huberman.
Em seu artigo 'Quando as imagens tocam o real', ele explica isso da seguinte maneira: “A montagem será precisamente uma das respostas fundamentais para esse problema de construção da historicidade. Porque não está orientada simplesmente, a montagem escapa das teleologias, torna visíveis as sobrevivências, os anacronismos, os encontros de temporalidades contraditórias que afetam cada objeto, cada acontecimento, cada pessoa, cada gesto. Então, o historiador renuncia a contar ‘uma história’, mas, ao fazê-lo, consegue mostrar que a história não é senão todas as complexidades do tempo, todos os estratos da arqueologia, todos os pontilhados do destino”.
Desta maneira, a montagem permite estabelecer uma relação crítica entre as imagens que ajuda a fugir da cadeia dos estereótipos, dos clichês do olhar que impedem ver muitas coisas. Para Didi-Huberman, o bom uso da imagem é, simplesmente, a boa montagem.
Sobre estas e outras questões conversará amavelmente na entrevista a seguir, concedida durante um intervalo em sua ocupada jornada, enquanto almoça empanadas antes de ir à inauguração da cátedra Políticas das Imagens, que presidirá na Universidade Nacional de Três de Fevereiro.
Eis a entrevista.
Como concebe a questão das sublevações e como esta exposição foi pensada a partir desse tópico?
Eu não comecei concebendo a sublevação; foi exatamente o movimento inverso. Acredita-se que o filósofo primeiro tem uma ideia geral e depois a aplica a uma exposição, mas não é isso que acontece. São as obras que se vai reunindo que dão uma ideia do que pode ser, embora não seja exatamente uma ideia, seja, acima de tudo, um caminho em uma série de problemas. Eu não tenho uma teoria ou uma definição de sublevação, não é esse o problema. É uma fenomenologia ou uma antropologia. Isso quer dizer que, de alguma maneira, é mais descritivo. Não é uma ontologia; é apenas um caminho com alguns exemplos com vínculos que creio que têm, mas resisto à ideia de qualquer definição.
Quais foram as questões que fizeram com que esse caminho fosse aceito na exposição? Trata-se de iconografias das lutas populares que para você são significativas?
O que me quer perguntar é por que não há sublevações fascistas? Há sublevações fascistas. Mas em uma exposição que pode ser vista em 10 minutos ou em 10 horas – suponhamos que se queira vê-la em 10 minutos –, se mostro um punho levantado e ao lado um sinal fascista, quando se olha rapidamente se verá um sinal igual entre as duas imagens. E eu não creio que haja um sinal igual entre as duas. Então evitei as sublevações populares reacionárias que existem, como neste momento na França, por exemplo.
O que significa, para você, refletir sobre a dimensão política das imagens?
Eu comecei como historiador da arte, ou seja, como um apaixonado pela beleza. E um dia me dei conta de que toda análise de uma imagem tem uma dimensão política, e toda imagem tem uma dimensão política. Então, tentei ser mais preciso, porque a dimensão artística sempre está em dialética com algo mais temível, mais perigoso.
Sua proposta como historiador da arte e filósofo das imagens baseia-se na ideia de que não há fontes originárias na história, nem causas e consequências lineares entre os acontecimentos. Seguindo o legado de Walter Benjamin, de alguma maneira o que você propõe é ultrapassar o que seria um tempo pacificado da narração ordenada, para o que propõe as noções de montagem e anacronismo. Como funcionam estas questões entre as obras que compõem Sublevações?
A princípio, funcionam por meio dos gestos. O fato de que quando se está alienado e se protesta contra essa alienação, o protesto toma uma forma corporal: é o braço que se levanta, o corpo que se movimenta, a boca que se abre, entre palavras e cantos, tudo isso é corporal. O corpo humano é a coisa mais antiga que possuímos, o corpo humano é mais antigo que um fóssil, que uma obra de arte grega; o corpo humano é muito antigo, é nossa antiguidade. Tudo isso é anacrônico. Quando um jovem do Maio de 68 se movimenta e pode se movimentar como Dionísio, é anacrônico.
Você escreveu o livro Imagens, apesar de tudo. Memória visual do Holocausto (2003) a partir de quatro fotos tomadas pelos Sonderkommandos (que eram os judeus que tinham a tarefa de colocar na câmara de gás os seus congêneres e depois enterrá-los; depois eles mesmos eram condenados), um texto no qual, entre outras questões, propõe a necessidade de mostrar essas imagens sobre o inimaginável, a Shoah. De que maneira estas fotos se inserem em Sublevações?
Estas quatro fotos fazem parte da exposição, mas se olharmos o que representam, podemos nos perguntar: “por que elas estão nesta exposição?” À esquerda há um grupo de mulheres que vão à câmara de gás para serem executadas, e na imagem da direita há cadáveres que são queimados... Onde está a sublevação? Aí a resposta é que não devemos ver nas imagens apenas o que elas representam. As imagens não são apenas coisas para representar; elas mesmas são coisas que estão no extremo de nossos corpos.
Quando estou com a minha máquina fotográfica e tiro uma foto (enquanto diz isso tira uma foto da jornalista), pronto, já fiz uma foto sua, está no extremo do meu corpo. Uma imagem é um gesto, e o gesto de fotografar essas pobres mulheres e esses pobres cadáveres, o próprio gesto de fotografá-los, ao mesmo tempo em que quem tira a foto sabia que iria morrer desse mesmo jeito, isso é um gesto de sublevação. E qual é o resultado? O resultado é que nós podemos vê-lo hoje. O que era terrível era que tudo isso era invisível para o mundo inteiro. Nós, graças a esse homem que morreu, evidentemente, temos acesso a esta verdade histórica.
Eu acrescentaria que essas fotos fazem parte de um conjunto de decisões tomadas por essas pessoas, esses prisioneiros, enterrados na terra. São fotos que fizeram explodir uma câmara de gás. É uma insurreição, essa imagem faz parte de um gesto de insurreição, apesar do que ela representa. E a grande pergunta destas imagens extremas seria essa: quando não há nada, quando não há nenhum meio para lutar, quando se está totalmente em atitude de humilhação, como, de alguma maneira, se subleva? Isso está claro.
As fotos têm, além do sinal dessa sublevação extrema, um valor testemunhal, são um legado de memória.
Sim, testemunho e também esperança. Não esperança para ele, o fotógrafo, que sabe perfeitamente que vai morrer, esperança para o futuro. Por isso, penso que o gesto de sublevação vai sempre para o futuro, mas sempre também é uma questão de memória. É o tema mais importante, é a relação entre o desejo, que vaio para o futuro, e a memória.
Às vezes questiona-se a necessidade de mostrar imagens de horror, muitos se perguntam se a exibição dessas imagens não pode alimentar o “morbo”, uma espécie de gozo perverso, através de certa dinâmica de circulação de imagens como a que predomina nos meios de comunicação de massa.
Já que falamos de perversão, poderíamos pensar que há pervertidos que gostam muito dos sapatos ou do cabelo. Então vamos suprimir o cabelo e os sapatos? Não, a perversão não está no objeto, está no olhar. Então, a imagem do horror, a imagem da guerra, é inocente. O que é culpado, eventualmente, é o olhar, a utilização que se faz da imagem. A perversão não está na imagem, está no olhar. Não acredito na necessidade de censurar determinado tipo de objeto, mas em modificar a atitude subjetiva sobre isso. Por exemplo, eu não tenho nenhuma vontade de ver vídeos do Daesh (Estado Islâmico), mas se um dia tivesse que trabalhar com isso, teria que assisti-los. O que posso fazer?
Você acredita que o olhar contemporâneo é determinado pelos meios de comunicação de massa? Condicionado para produzir determinadas cegueiras e determinadas visibilidades e determinados clichês do olhar.
Há um filósofo de que gosto muito, que se chama Gilles Deleuze, e ele disse uma coisa que adoro: não vivemos numa civilização da imagem – isso não é verdade –, vivemos numa civilização dos clichês. E nosso trabalho é olhar imagens ou criar imagens que desconstruam os clichês. Por isso, interessa-me colocar em relação as imagens entre si através de um recurso constante à ideia da montagem. O importante é colocar em relação as imagens, porque elas não falam de forma isolada.
E como se faz isso?
Com montagem. Por exemplo, na linguagem temos um clichê com a imagem “povo”. Na França, Marine Le Pen utiliza o termo “povo”. Nesse caso, eu tenho que renunciar à palavra “povo”? Não, eu vou fazer outra montagem, diferente daquela que faz Marine Le Pen, e o mesmo acontece com as imagens.
Geralmente se costuma entender o ato de olhar como um fato dado pela sensibilidade, simples, direto, sem mediações, algo que seria simples e imediato. Mas você defende que, pelo contrário, devemos trabalhar muito para poder olhar. Como é essa tarefa?
Sim, sim, temos que trabalhar para além da pura visão. Temos que trabalhar além da simples informação imediata que pode chegar ao clichê. Porque olhamos também com palavras, e, às vezes, olhamos muito mal. Precisamos tomar o tempo para ver um pouquinho melhor.
É necessário desenvolver algum tipo de pedagogia destinada a gerar novos espaços de visibilidade?
Sim, a pedagogia das pessoas que fizeram perguntas não consensuais sobre as imagens, mas não há muita gente que faça isso. Há uma desproporção completa entre a importância que se dá às imagens na vida cotidiana, na política, no marketing, etc., e a ausência de reflexão sobre as imagens. Considera-se que aqueles que refletem sobre as imagens são muito complicados, mas isso não é verdade; não são mais complicados do que aqueles que trabalham na Bolsa (ri).
Que tipo de contribuição para a construção histórica você acha que este tipo de conhecimento pela imagem é capaz de dar?
Em todos os campos de conhecimento histórico, em todas as áreas, a imagem traz questões específicas e interessantes.
O filósofo sublevado
Nascido em 1953, Georges Didi-Huberman é filósofo e historiador da arte. Conferencista desde 1990, é professor na École des Hautes Études en Sciences Sociales (França). Foi premiado em Hamburgo pela Fundação Aby Warburg e em 2015 recebeu o Prêmio Theodore W. Adorno, que recompensa as contribuições excepcionais nos campos da filosofia, música, teatro e cinema.
É autor de cerca de 50 livros e ensaios nos quais combina filosofia e história da arte, como L’oeil de l’histoire (O olho da história), composto por cinco volumes publicados entre 2009 e 2015. Foi curador, entre outras, da exposição Atlas, como carregar o mundo nas costas? (inspirada no historiador da arte Aby Warburg), produzida pelo Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia de Madri, e cocurador da exposição Nouvelles Histoires de Fantômes no Palais de Tokyo de Paris em fevereiro de 2014 com o fotógrafo Arno Gisinger.
No Brasil, entre outros, foram editados os seus seguintes livros: O que vemos, o que nos olha (São Paulo: Editora 34, 1998); A sobrevivência dos vaga-lumes (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011); Diante da imagem (São Paulo: Editora 34, 2014); A pintura encarnada (São Paulo: Editora 34, 2014); Diante do tempo. História da arte e anacronismo das imagens (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015); Quando as imagens tomam posição. O olho da história, I (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015); Que emoção! Que emoção! (São Paulo: Editora 34, 2016).
Didi-Huberman é o curador da exposição Sublevações (Soulèvements), que permanecerá em exibição no Museu de Arte Universidade Nacional de Três de Fevereiro (Muntref), na cidade de Buenos Aires, de 21 de junho a 27 de agosto. Trata-se de uma exposição sobre os acontecimentos políticos e as emoções coletivas de movimentos de massas em luta. A mesma trata sobre as desordens sociais, a agitação política, a insubmissão, as revoltas e as revoluções de todo tipo, e mostra como os artistas abordaram estes temas em diferentes momentos da história. Reúne mais de 250 obras entre pinturas, desenhos e gravuras, fotografias, filmes e documentos, de artistas como Marcel Duchamp, Man Ray, Tina Modotti e Henri Cartier-Bresson, entre outros. Esta exibição foi organizada pelo Jeu de Paume de Paris em colaboração com o Muntref para sua apresentação em Buenos Aires e conta com a participação do Museu Nacional de Arte da Catalunha, Barcelona; do MUAC (Museu Universitário de Arte Contemporânea) UNAM, México; da Galerie de l’UQAM (Universidade de Québec, Montreal) e do SESC São Paulo.
Sublevações foi exposta pela primeira vez no final do ano passado em Paris e depois chegou a Barcelona, antes de desembarcar em Buenos Aires. Depois continuará seu périplo por São Paulo, México DF e Montreal. Pelo fato de este projeto ser reeditado em cada lugar por onde passa, Didi-Huberman integrou nesta exposição obras de artistas locais como Eduardo Longoni, Abraham Regino Vigo, Adriana Lestido e León Ferrari.
Nesta quarta-feira, 21 de junho, às 10h30, Didi-Huberman fará a apresentação acadêmica da exposição, ao lado de Marta Gili, diretora do Jeu de Paume; Eduardo Jozami, diretor do Centro de Estudos da Memória e História do Tempo Presente da Untref; Alberto Manguel, diretor da Biblioteca Nacional; e Diana Wechsler, diretora da área de Arte e Cultura da Untref, com a coordenação do reitor Aníbal Jozami. O evento acontecerá no Muntref Centro de Arte Contemporânea (Sede Hotel de Imigrantes).