|
junho 19, 2017
Documenta falha em ambição por Moacir dos Anjos, Valor Econômico
Documenta falha em ambição
Artigo de Moacir dos Anjos originalmente publicado no jornal Valor Econômico em 19 de maio de 2017.
A Documenta é a mostra de arte contemporânea mais aguardada por aqueles que trabalham no campo das artes visuais. Realizada a cada cinco anos na cidade de Kassel, a exposição foi criada em 1954 como parte do esforço do governo alemão em combater, no pós-Segunda Guerra, a violência do regime nazista no âmbito cultural.
Ao longo dos anos, contudo, a mostra se liberou de sua origem instrumental e se afirmou como plataforma para fazer-se, a cada quinquênio, um ajuste de contas com as representações de mundo que a produção artística é capaz de oferecer. Torna-se protagonista no embate de posições que a geopolítica contemporânea engendra e abre-se a contaminações pelo que vem de outras partes e a incursões, ainda que pontuais, a diferentes regiões do planeta.
Em sua 14ª edição, a Documenta é marcada pela agudização dessas tendências. Por um lado, quer despegar-se de Kassel como o centro simbólico a partir do qual a produção artística mundial é avaliada, posta em contato e exibida; por outro, quer revogar a prerrogativa de a cidade alemã ser o único ou principal território para a exibição das obras selecionadas.
Em movimento ousado, seu curador, o polonês Adam Szymczyk, decidiu dividir a exibição em duas partes, ambas contendo trabalhos dos 160 artistas escolhidos em lugares diversos do mundo. Enquanto a segunda delas, a ser inaugurada em junho, seguirá sendo realizada em Kassel, a primeira está já instalada e aberta à visitação em Atenas, na Grécia.
É inevitável que essa inédita mudança geográfica esteja no centro das expectativas de quem visita a mostra, fazendo com que se indague as razões que as explicam. Para seu curador, realizar a Documenta em Atenas se justificaria pelo fato de a dinâmica social, econômica e política da capital grega simbolizar, já há alguns anos, algumas das mais prementes questões que afetam o mundo: dívidas impagáveis, crise de refugiados, desemprego estrutural, xenofobia, nacionalismos extremados, racismo, homofobia, fim do Estado de bem-estar social, entre outras tantas.
Seria também justificável, entretanto, por Atenas igualmente simbolizar a capacidade de resistência a esse quadro de desmanche, sendo lugar de insurgência contra o receituário neoliberal de enfrentamento da crise e de invenção de projetos políticos mais inclusivos, em que discursos e aparatos normativos são desafiados.
Para Szymczyk, era necessário e urgente que a exposição - e, por extensão, também a própria instituição Documenta, originada em país que ocupa polo oposto ao da Grécia na geopolítica europeia - pudesse "aprender com Atenas"; que pudesse aprender a mover-se e a criar formas de vida em um ambiente quase cronicamente conflituado. E "Aprender com Atenas" de fato foi, ainda em 2013, divulgado como título provisório da Documenta 14.
A difícil tarefa autoimposta pelos curadores era, portanto, transformar essa complexa intenção em uma exposição de arte que estivesse à sua altura. Exercitar uma pedagogia de aprender com uma cidade em crise permanente. E não qualquer cidade, mas uma que representa, a despeito do desprezo que por ela nutrem os críticos conservadores da crise europeia, a origem de muito do que se conhece como distintamente europeu.
Foram várias as estratégias criadas pelo curador e sua equipe para "aprender com Atenas", embora sua face mais visível seja uma exposição espalhada em cerca de 40 localidades de Atenas, ainda que concentrada em quatro delas.
É importante mencionar, todavia, que, talvez em antecipação às previsíveis dificuldades de operacionalizar (ou submeter-se a) tal inversão de posições hierárquicas (quem ensina quem), o conceito de "aprender com Atenas" foi gradualmente substituído por outro, ainda mais ambicioso (mas menos comprometido em termos geopolíticos), chamado de "aneducation", ou, mal traduzindo, "deseducação".
Apoiada na ideia de que a Documenta deveria criticar os próprios poderes normativos de uma exposição, a curadoria terminou por subtrair, do âmbito da mostra, mesmo informações básicas sobre os trabalhos e os contextos onde foram criados. Embora Szymczyk sustente que o objetivo da mudança da exposição para Atenas tenha sido "desaprendermos o que sabemos", o que aconteceu, nesses casos, foi a sonegação de informações que poucos já detinham.
Um outro conceito por fim adotado pelos curadores para estruturar a mostra foi o de "continuum", tomado emprestado do compositor grego Jani Christou. Tal conceito se refere a uma forma aberta de criação coletiva para atividades que podem ocorrer ao longo de um tempo dado, engajando diferentes pessoas e suas contribuições singulares sem a obediência a um roteiro pré-estabelecido.
O que a Documenta 14 propunha a partir dessa ideia era transformar organizadores, artistas e visitantes da mostra em integrantes de um processo de aprendizado partilhado, em que desaprender o que é já sabido seria o objetivo. Uma aposta para testar o poder emancipatório da arte e, em particular, de exposições artísticas de grandes dimensões.
Uma visita à mostra em Atenas sugere, porém, que essa ambição curatorial talvez tenha sido desmedida, mesmo que o teste final - a porção da Documenta a ser realizada em Kassel - ainda esteja por vir. Desmedido que se evidencia quando a mostra é confrontada com os condicionamentos longamente estabelecidos sobre o que é arte e sobre como se relacionar com ela em ambientes expositivos, impossíveis de serem desfeitos a golpes rápidos e superficiais como o que foram propostos em Atenas.
A impressão que fica, a despeito da inteligência formal e pertinência política de muitas das obras expostas - sobre as quais não há aqui espaço para falar -, é a de existir um imenso golfo entre as boas intenções do projeto e aquilo que dele de fato resultou. Em muitas ocasiões, a ideia de continuum se torna apenas motivo para justificar projetos que envolvem música, sem que de fato desfaçam distâncias entre obra, artistas e público. Em outras vezes, a falta de informações e de contexto sobre o que é exposto leva ao simples desinteresse por um trabalho que, fosse o projeto mais generoso com o visitante, poderia despertar nele associações insuspeitadas.
Por fim, há uma questão que atravessa e antecede todos esses conceitos e que embasa muito do pensamento da equipe curatorial da Documenta 14. É a ideia de falar a partir do Sul, ou de ter o Sul político como "estado de espírito" ou bússola organizadora da mostra. "South as a State of Mind" é o título de um projeto editorial composto por quatro revistas que, publicadas entre 2016 e 2017, reúnem textos sobre o imaginário violento e desconcertante do mundo contemporâneo, dialogando com o projeto curatorial da Documenta 14.
A despeito da excelência das contribuições incluídas nessas edições, talvez o mais interessante e revelador a destacar seja o fato de elas serem números especiais de revista de mesmo nome publicada desde 2012 em Atenas. Por dois anos, Adam Szymczyk e seu editor convidado, Quinn Latimer, tomaram emprestada a revista "South as a State of Mind" e assumiram sua direção editorial. É revelador que quem define a fala do Sul na revista e quem fala a partir dessa região imaginária, ou mesmo quem define o que significa o Sul nesse contexto, não são os artistas, curadores, editores e escritores de Atenas, mas a equipe curatorial que vem do Norte e que está ali de passagem. Norte que aqui é posição geográfica e também política.
Tomando esse projeto editorial como metáfora do que de fato resultou de um projeto que se propunha a aprender com o Sul, talvez seja possível fazer uma provocação e dizer que, nesta Documenta, a Alemanha terminou por assumir, simbolicamente, o controle da Grécia. E isso, no contexto político europeu atual, não é pouca coisa. Não há de ter sido por nada, afinal, que os primeiros dias de exposição foram marcados por protestos de artistas, curadores e educadores gregos acerca do que consideram um projeto pouco atento ao ambiente local, usado, de seu ponto de vista, mais como cenário político do que como lugar a ser efetivamente enfrentado. Viajar até o Sul, nos tempos de agora, é mesmo complicado.
Esse paradoxo ficou claro àqueles que compareceram, ao fim do dia de inauguração da Documenta, à festa promovida pela Prefeitura de Atenas para os curadores e convidados da mostra. Dentro de um cercadinho vigiado por guardas, uma das principais praças da cidade abrigava gente bem vestida, comida e bebida típicas da Grécia e uma banda de música que ficaria bem, talvez, em um filme ruim de Woody Allen que viesse a ser filmado em Atenas. Do lado de fora da cerca, algumas faces dos muitos moradores de rua de Atenas olhavam desconfiados para aquilo tudo, sabedores de que aquela festa, como tantas outras, não era mesmo para eles. Viajar até o Sul é complicado mesmo.
Moacir dos Anjos é pesquisador e curador da Fundação Joaquim Nabuco e viajou a Atenas a convite do Centro Cultural Brasil Alemanha, Recife.