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abril 19, 2017
Livro avalia a transformação da escultura brasileira nas últimas décadas por Nelson Gobbi, O Globo
Livro avalia a transformação da escultura brasileira nas últimas décadas
Matéria de Nelson Gobbi originalmente publicada no jornal O Globo em 17 de abril de 2017.
Obra do curador Marcelo Campos destaca a obra de 91 artistas
RIO — Desde o início de sua História, o Brasil tem na escultura uma de suas maiores expressões artísticas, seja por meio das tradições indígenas e africanas, do barroco originário da Europa ou da produção acadêmica criada após a chegada da Família Real, em 1808. É com o movimento concretista, nos anos 1950, contudo, que a produção tridimensional se internacionaliza e amplia seu diálogo com outras vanguardas mundiais.
A transformação da arte brasileira nas últimas décadas é retratada no livro “Escultura contemporânea no Brasil — Reflexões em dez percursos” (Caramurê Publicações), resultado de três anos de pesquisa do professor e curador carioca Marcelo Campos, que destaca a obra de 91 artistas em 420 páginas e mais de 300 ilustrações.
A partir de uma seleção de 200 nomes, Campos criou dez capítulos-conceitos nos quais agrupou produções de diferentes vertentes, escolas e períodos, ressaltando as conexões entre os trabalhos e suas propostas. Assim, o autor — que é diretor da Casa França-Brasil e professor do Instituto de Artes da Uerj e da Escola de Artes Visuais do Parque Lage — reuniu nomes como Cildo Meireles, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Ernesto Neto, Iole de Freitas, Waltercio Caldas, Anna Bella Geiger, Efrain Almeida, Ascânio MMM e Abraham Palatnik dentro de temas conceituais, a exemplo de “Corpo, organicidade”; “Apropriação conceitual, imagéticas populares”; “Eu-objeto, relicários, espólios”; e “Ritual, totemismo, ídolos”.
— Ao fugir de uma pesquisa realizada em ordem cronológica, tive a liberdade de escolher uma quantidade menor entre os 200 artistas selecionados inicialmente, sem a necessidade de abordá-los por uma perspectiva de datas e movimentos, e sim buscando o elemento poético de suas obras — observa Marcelo Campos. — Eu parti do que considero características comuns ou sintomas de determinadas produções. Essa divisão me permitiu juntar artistas que dificilmente estariam conectados em outras pesquisas, como o Ernesto Neto e a Márcia X., que tinham uma obra mais ligada à performance. Ou unir produções separadas geracional e geograficamente, como as de Ricardo Basbaum e de Juarez Paraíso. Foi o que me deu mais prazer nesse trabalho.
Para o autor, a relação entre obra de arte e corpo colocou o Brasil em evidência no circuito internacional, sobretudo no de caráter mais institucional, a partir de trabalhos como os de Lygia Clark e Oiticica, que continuam entre os artistas nacionais que mais despertam interesse no exterior.
— Essa vertente concretista, do corpo, da organicidade, da participação do espectador criou um novo capítulo para a arte brasileira e a internacionalizou definitivamente. Hoje vemos a produção de muitos brasileiros que seguem essa tradição, com grande repercussão no exterior, para além de qualquer discussão sobre compreensão local da arte. É claro que existem as questões do mercado, mas pensando institucionalmente percebemos uma grande força nessa produção — destaca Campos.
Presente com quatro obras no livro, incluindo “La bruja”, que ilustra a capa, Cildo Meireles é um exemplo dos artistas citados pelo autor, com obras adquiridas por grandes instituições e com constante destaque em mostras representativas. Para ele, a produção contemporânea traz a marca dos parâmetros estabelecidos pelo concretismo:
— Talvez a nossa verdadeira Semana de Arte Moderna tenha acontecido na década de 1950, a partir dali se estabelece uma singularidade da produção brasileira, e é gerado um interesse genuíno do circuito internacional sobre o que estava sendo feito aqui. A questão multissensorial, da obra imaginada não apenas para o olho, foi uma enorme contribuição brasileira para a arte nas décadas seguintes, que faz com que a gente mantenha essa presença constante em mostras, exposições e eventos mundo afora — comenta Cildo.
FORÇA POÉTICA
Igualmente destacado no livro, Ernesto Neto acredita que a organicidade da produção brasileira venha das características do povo e de suas tradições, sobretudo das indígenas e africanas.
— A Lygia Clark e o Hélio Oiticica, que começaram como pintores, perceberam essa limitação da moldura para a complexidade da vida e das questões do Brasil. A gente tem uma força corporal absurda, nossa obra traz esse volume. A sociedade ocidental é mais objetiva, baseada no olhar. Mas o Brasil é pura subjetividade, não é só olho, é nariz, boca, tato — compara Neto. — A pintura é prática, resiste mais ao tempo, e por isso acaba se tornando a grande arte para o mercado. Mas para o mundo cultural ela é mais limitada.
Para Efrain Almeida, a quem Marcelo Campos dedica o livro, a produção escultórica brasileira segue ganhando admiradores por questões que dialogam com a corporeidade, como a memória, além de sua força poética:
— Acredito muito na ideia de pertencimento, o lugar que o artista vive gera ecos em seu trabalho. Muitas vezes algumas sutilezas da nossa sociedade criam uma abordagem mais sensível. Até na arte política, que em outros lugares é mais explícita, muitas vezes quase panfletária, aqui não é tão frontal por conta de uma certa delicadeza — analisa Efrain.