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abril 19, 2017
As formas que o tempo revela por Maria Hirszman, ARTE!Brasileiros
As formas que o tempo revela
Matéria de Maria Hirszman originalmente publicada na revista ARTE!Brasileiros em 13 de abril de 2017.
A persistência de agentes transformadores sobre rochas e outros materiais é tema que dá norte à exposição de Marcelo Moscheta no Museu de Arte Contemporânea de Campinas
Erosão Diferencial, exposição que Marcelo Moscheta realiza atualmente no Museu de Arte Contemporânea de Campinas (MACC), é ao mesmo tempo um afinado resumo de sua produção recente e um desafio lançado para o futuro. Além de atualizar sua trajetória na cidade que adotou como residência (sua última exposição campineira foi em 2004), a mostra atual tem também uma clara atitude política: servir de espaço de troca e criação coletiva, dando maior visibilidade ao MACC. “Este é praticamente o único espaço expositivo da cidade e está por um fio. É um grito de salvação, a gente não pode deixar esse lugar morrer”, diz Moscheta.
Para mobilizar a atenção da comunidade, Moscheta lançou um edital convocando interessados a participarem da mostra. Apareceram 30 voluntários. “Tem gente mais velha, gente mais nova, gente que não é das artes visuais, tem gente que quer trabalhar só diretamente com a mediação de público”. No sábado anterior à abertura, havia dez colaboradores ajudando a montar a exposição. O artista também transferiu seu ateliê integralmente para o espaço do museu e se propôs a criar coletivamente durante o tempo de abertura da casa. “Cheguei a uma conclusão de que muito melhor seria se eu trouxesse a cidade inteira para trabalhar aqui dentro”, constata.
Não há regras específicas para que o grupo trabalhe. Apenas um ponto de partida: uma foto da pedra do Camelo, situada no Parque estadual de Vila Velha (Ponta Grossa, Paraná). E também um conceito norteador, que está muito presente em suas reflexões e traz implicações ao mesmo tempo físicas e simbólicas: a ideia de erosão, do processo persistente de fricção, que acaba eliminando o mais frágil para que o mais resistente permaneça.
Além disso, às quintas, quando o museu fecha mais tarde, são organizadas atividades como aulas de desenho, palestras, visitas guiadas, etc. Os interessados podem encontrar mais informações no site http://www.erosaodiferencial.com.br/Exposicao-MACC. “Museu não é simplesmente um espaço de display. É um espaço de produção de pensamento”, explica Moscheta.
A exposição se inicia com Deslocando Territórios, trabalho de 2011 feito para a Bienal do Mercosul e que foi reeditada para a exposição do MACC. Aí nasce uma série de trabalhos decorrentes de ações realizadas em diferentes pontos geográficos do planeta.
Neste conjunto, destaca-se um profundo interesse pela paisagem (em seus aspectos geológicos, poéticos e simbólicos) e o uso da pedra, em sua dureza e densidade, como marco e elemento de criação plástica. Deslocando Territórios, por exemplo, associa um conjunto de rochas recolhidas por ele em uma travessia ao longo de toda a fronteira do Uruguai com o Brasil a imagens dessas pedras em grafite sobre PVC negro. São desenhos de grande beleza plástica e delicadeza extrema, que se esvaem com facilidade.
Além do uso de representações frágeis de coisas perenes, da experimentação de novas técnicas e materiais, o deslocamento passa a ser fundamental em sua trajetória. Frutos de uma tendência crescente na arte contemporânea, a de realização de residências artísticas pelo mundo afora, suas peregrinações vão do Polo Norte (Miragem, 2012) ao Deserto do Atacama.
Linha-Tempo-Espaço (2013), um dos destaques da exposição, é fruto desse mapeamento que o artista faz do deserto. Ao colocar, sobre uma longa estrutura de ferro, duas mil réplicas em cerâmica de uma ferramenta paleolítica de mais de 10 mil anos, Moscheta parece entrecruzar tempos e histórias distantes. “Eu gosto dessas camadas históricas que existem nos lugares”, diz ele, explicando que seu trabalho tem sempre esse embate entre o homem à natureza.
Processo semelhante ocorre em Arrasto, trabalho de grande fôlego no qual percorre, durante seis meses, toda a extensão do rio Tietê, da nascente à foz, criando uma obra que remete ao mesmo tempo ao processo de catalogação científica, ao desbravamento de tempos idos e à denúncia das marcas deixadas pelo homem. “O homem quer colocar a natureza numa coordenada, fixada em algum meridiano, e a natureza por sua vez resiste”, sintetiza.
De certa forma, a exposição atual encerra um ciclo e abre outro para o artista. Ao exibir a produção mais recente, que gira em torno da ideia de mensuração, abstração e delimitação do espaço e do tempo simultaneamente à proposta de coletivização do processo criativo, ele promove duas reviravoltas, desafiantes e promissoras, em sua trajetória. Em primeiro lugar inverte à tendência de produzir e exibir fora, usando Campinas como um porto seguro, de retorno. Em segundo lugar, coloca o artista, que sempre produziu solitariamente, na tranquilidade do atelier ou em longas viagens solitárias, diante do desafio de criar algo coletivamente e em público.
“Eu me sinto um pouco me colocando numa fogueira porque meu processo de trabalho é muito solitário, minhas viagens são solitárias”, diz ele, ressaltando sua animação com as novas perspectivas e a ênfase na troca. E conclui: “Não espero nada. Esse tempo vai determinar. Erosão então vai fazer isso para gente”.