|
abril 12, 2017
No mundo da arte, questão racial esbarra na apropriação cultural, por Silas Martí, Folha de S. Paulo
No mundo da arte, questão racial esbarra na apropriação cultural
Análise de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 30 de março de 2017.
Quando a Bienal do Whitney abriu as portas há duas semanas, em Nova York, um grupo de ativistas bloqueou a visão de um dos quadros. Era uma pintura da artista branca Dana Schutz representando, em chave expressionista, o rosto inchado e mutilado do negro Emmett Till como visto em seu caixão.
Till tinha 14 anos quando foi linchado, seu corpo jogado no rio Mississippi, no sul ainda segregado dos Estados Unidos, em agosto de 1955. Suspeitavam que ele tivesse flertado com uma garota branca. Um júri também todo branco absolveu seus algozes, mas a história que veio depois, em especial seus ecos nas artes, tem mais matizes.
No Whitney, militantes que exigiam a retirada e destruição do quadro de Schutz usavam camisetas com a frase "espetáculo da morte negra". Enquanto isso a negritude, desfigurada ou erotizada, vem se tornando um espetáculo controverso no cenário artístico da última década.
Brasil e Estados Unidos, igualados ao menos no passado escravocrata, parecem tentar exorcizar pela arte um passado imperdoável de brutalidade e injustiça contra os povos negros, um histórico, no caso, que se arrasta em muitos aspectos até o presente.
Na falsa democracia racial que vigora por essas bandas, artistas antes vistos como brancos, pardos ou mestiços vêm se declarando só negros, contrariando a narrativa de uma miscigenação que tudo neutraliza –reflexo talvez da pressão de um mercado que descobriu uma moda perversa e passou a reduzir seus artistas a cotas de cor.
Obras que antes contornavam a pele agora parecem se ancorar nela.
Surfando essa onda, o Masp destaca em sua grande galeria de pinturas o retrato de um negro açoitado feito por Cézanne no auge da luta abolicionista. O museu, aliás, planeja um ciclo de exposições sobre o legado da escravidão, começando com uma retrospectiva do grafiteiro americano Jean-Michel Basquiat, e acaba de comprar para seu acervo duas telas que tocam na questão racial.
Esses quadros, do carioca Heitor dos Prazeres e do uruguaio Pedro Figari, retratam personagens negros; o primeiro mostra um dândi dos trópicos batizado "O Artista", e o segundo flagra uma roda de candombe, versão do candomblé que fincou raízes em muitos territórios de antiga colonização espanhola.
No Brasil, mesmo no círculo restrito dos vernissages, fenômenos recentes ilustram essa tendência. Paulo Nazareth, que se diz branco, negro e índio, é incensado pela crítica como o maior nome negro das artes do país.
Entre colecionadores, ele virou uma coqueluche incontornável com seus autorretratos fingindo ser um andarilho a desbravar as Américas.
Jonathas de Andrade, dos mais brilhantes artistas de sua geração, dá outro nó na questão, erotizando o corpo mestiço ao mesmo tempo em que denuncia sua exploração numa economia racista.
Na próxima Bienal de Veneza, a primeira após uma edição que teve recorde de artistas africanos, o negro Ayrson Heráclito estará na mostra principal com um trabalho que alude aos horrores do tráfico de escravos para o Brasil.
O mundo branquíssimo dos cubos brancos parece se esforçar para remediar uma injustiça. Negros, sujeitos e objetos dessas obras, estão na crista da onda do circuito, mas sua suposta inclusão esbarra em questões de apropriação cultural e fetichização.
O que essa exploração institucional da negritude talvez revele seja menos uma reparação tardia e mais o triste fato de que, hoje, nas artes visuais, a carne mais barata do mercado é a carne negra.