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março 15, 2017
A universidade de Artes transforma arte política em transtorno mental por T. Angel, frrrkguys
A universidade de Artes transforma arte política em transtorno mental
Entrevista realizada por T. Angel originalmente publicada no Beautification, Body Art & Body Modification Culture em 10 de março de 2017.
Quando fiz a minha primeira performance em 2005, FUR era o seu título, dentro de uma Universidade, costurei os meus lábios com agulha e linha, cortei repetidamente o meu corpo e usei o meu sangue como construção desse processo criativo. Era uma performance que aconteceu dentro de uma Universidade de Moda para denunciar o consumo de pele animal dentro da Indústria da Moda. No dia seguinte recebi a informação que não poderia mais repetir algo do tipo, isto é, usar o meu sangue como usei, pois ali era uma Universidade de Moda e não de Arte. Assim como eu quantas e quantos artistas mais?
Muitos e muitas artistas da performance ao redor do mundo já foram parar na prisão ou receberam pressão policial para o encerramento de determinada ação performática, principalmente quando em espaço público, como exemplo, o artista russo Pyotr Pavlensky, Muitos e muitas artistas ao redor do mundo já receberam ameaças de morte por conta de seus trabalhos de performance, por exemplo, o artista espanhol Abel Azcona pelo trabalho Desenterrados (2015). No Brasil, temos o caso da artista Pêdra Costa pelo trabalho Sem Título (2010), também conhecido como A performance do Terço ou A descolonização do corpo, o caso do artista Yuri Tripodi pelo trabalho Ul-traje para ocasiões fúnebres (2014) e o caso da artista Priscila Toscano com o trabalho Máfia (2016). Todos os casos citados ganharam gigantescas proporções na grande imprensa (inclusive internacionalmente), por estarem friccionando questões como a religião, o gênero, a nudez, os bons costumes e, sobretudo, o que um corpo pode ou não fazer. Acho importante incluir ainda, que nada disso é novo, já em 1931 o artista Flávio de Carvalho sofria sérias ameaças de linchamento público pelo trabalho Experiência n. 2.
Agora, mais um caso vem a somar com essas histórias individuais que se misturam com a História da Arte Contemporânea, especificamente a história da arte da performance. Assim, entrevistamos Edilson Militão, estudante de Artes Visuais no Centro de Artes da Universidade Regional do Cariri, Ceará, para entendermos o que tem acontecido desde que ele passou a usar o seu próprio corpo em seu trabalho no campo da performance art. Não nos prolongaremos mais na introdução, pois consideramos de suma importância que se leia as próprias palavras do jovem estudante e artista.
T. Angel: Antes de qualquer adiantamento em nossa conversa, gostaria que você falasse um pouco sobre os seus interesses em arte e que nos contasse sobre o seu trabalho enquanto performer.
Edilson Militão: Sou estudante da licenciatura em Artes Visuais no Centro de Artes da Universidade Regional do Cariri, num curso que pretende formar artistas, professorxs e pesquisadorxs. Sou filho de trabalhadores que nunca sonharam com a possibilidade da Universidade Pública. O meu interesse por pesquisar, ensinar e produzir arte é também o meu interesse por revolução social. O meu interesse por arte contemporânea, performance arte, anti-arte, não-arte, arte política e arte abjeta surge desde as primeiras reflexões a respeito do próprio sentido da arte enquanto deleite estético assegurado para as elites econômicas e intelectuais. Os estudos da performance arte me interessaram pela relação do uso do corpo como material fundamental e pela maleabilidade dessa característica, e quando percebi o poder da subversão e da iconoclastia no estudo e na produção de imagens políticas nas quais o corpo é, ao mesmo tempo, o objeto e o conceito. A minha satisfação de criar e/ou de subverter algo criado, a priori para a apreciação de classes privilegiadas, ressignificando e recosturando os espaços de fala dentro da elite intelectual (cartesiana e eurocêntrica) e do mercado das artes, é maior do que o desejo de apreciar o objeto artístico na condição de público. O meu interesse por arte surge da necessidade. É uma necessidade política por transformação social a partir do meu corpo de viada, nordestina, preta, pobre e precária, e da necessidade de contra atacar os cis-temas héterocapitalistas e ectoparasitários que tentam controlar e exterminar a existência dos corpos dissidentes não normativos, das populações marginalizadas e periféricas. Os trabalhos de vários artistas e performers me influenciam são o Coletivo Coiote, Pêdra Costa, Elton Panamby, Bartira Dias, Fakir Musafar, Filipe Espindola, Orlan, Jota Mombaça, Flávio de Carvalho, Acionistas Vienenses, Juma Marruá, Movimento de Arte Pornô, Coletiva Vômito, Allan Kaprow, Piotr Pavlenski, Sergio Zevallos, Grupo Chaclacayo e até mesmo o Fluxus, por terem sido decisivos ao meu desejo inicial de pesquisar a linguagem da performance, seu processo de criação e produção, e suas repercussões nos meios em que ocupamos.
Nas performances e nos happenings que criei e apresentei, faço uso do meu corpo enquanto organismo pulsante, preto e indígena, sendo este organismo a zona de ação que nega a hierarquia e submissão a sinhás e sinhozinhos. Minha poesia e meu processo partem do tema da violência e do corpo marginal que reivindica local de fala confrontando os territórios de poder. Minhas ações são experimentos performáticos rizomáticos que tratam da história colonial denunciando sua violência contemporânea, como no caso do racismo institucional e abusos de poder. Um dos casos específicos acontece na universidade em que estudo, a URCA – Universidade Regional do Cariri, no interior do Ceará, porém são casos facilmente reconhecíveis em qualquer universidade do país.
T. Angel: Você estuda Artes Visuais na Universidade Regional do Cariri (URCA). Como tem sido sua relação e vivência nesse espaço?
Edilson Militão: Aterradora. Tenho sofrido perseguições contínuas, ouvindo insultos e ameaças constantemente, quase diariamente, desde que apresentei minha primeira performance que trazia críticas aos já existentes e crescentes casos de assédio e abuso de poder. Existe uma carta repudiando a mim e às minhas performances, escrita por um grupo de professores deste centro de artes. É difícil falar sobre a convivência neste espaço.
T. Angel: Você está enfrentando 4 processos pela Universidade, correto? Poderia nos contar um pouco sobre essa situação?
Edilson Militão: Correto. Após a publicação da “Moção de Repúdio Endereçada às Instituições de Ensino Superior de Artes do Brasil”, em 06 de maio de 2016, no site oficial da URCA, eu processei o Centro de Artes da Urca. A moção foi escrita por professores, a princípio com o nome de todos, mas quatro retiraram seus nomes, e tem o claro objetivo de me criminalizar, patologizar e punir causando danos difamatórios. Além de justificar o fato de terem chamado o SAMU e a PM para dentro da Universidade durante minha performance, afirmaram que a morte do meu pai, que faleceu na mesma época, foi o motivo para eu desenvolver transtornos psicológicos. No processo por danos morais foi pedida a retirada da Moção e publicação de pedido de desculpas pela universidade. Como resposta o Centro de Artes se negou a retirar a Moção e abriu quatro processos para investigar as denúncias administrativas feitas contra mim, que também foram anexados na defesa jurídica do centro de artes. Num dos memorandos requerendo a abertura de medidas administrativas contra mim, uma professora pede punição penal para mim e pede para que eu seja obrigado a passar por tratamento psiquiátrico e psicológico compulsório. Num outro, esta mesma professora pede que eu seja recluso de liberdade, pois “ofereço risco de vida pra mim e para outros estudantes”. Usaram, inclusive, o termo “homem comum”, alegando que eu não sou um “homem comum” e que por isso mereço reclusão de liberdade.
T. Angel: Especificamente a parte em que alegam que você seja doente mental, partiu de onde exatamente?
Edilson Militão: Isso está sendo alegado em 6 momentos: na Moção de Repúdio, na defesa jurídica do Centro de Artes e em cada um dos 4 memorandos requerendo a abertura de medidas administrativas contra mim. Eles repetem a cada parágrafo do processo que um performer que, durante uma performance, tem coragem de tirar a roupa e/ou perfurar-se, é declaradamente louco! Isso é um absurdo, visto que minha performance é baseada em pesquisa sobre o corpo como suporte e material, no corpo como base de criação artística e na body art e também nos escritos e pesquisas de Roselee Goldberg, Renato Cohen, Jorge Glusberg, Beatriz Ferreira Pires, Jean-Jacques Lebel. Basta conhecer qualquer livro que trata especificamente do uso do corpo na performance para entender a diferença entre patologização e arte. Bem, como começaram a afirmar isso eu realmente não sei, já que nenhum dos professores que alegam isso é médico e, portanto, nenhum deles está apto a deferir laudo psiquiátrico a ninguém. Saliento ainda que no processo não consta parecer de nenhum médico psiquiatra ou psicólogo, não consta nenhum laudo. Há apenas suposições a partir das leituras sobre as minhas performances. Antigamente, na história das sociedades, declaravam mulheres de bruxas para então puni-las. Depois, com o advento da psicanálise, passaram a patologizar vítimas de perseguição para deslegitimar suas denúncias e assim inverter os papéis entre agressor e agredido.
T. Angel: Além de você, existem outras pessoas que passaram situação similar que você conheça?
Edilson Militão: Sim, várias. No caso do assédio moral, pelo menos 9 professores já pediram afastamento, demissão, transferência ou até mesmo exoneração de seus cargos alegando perseguições e assédio moral. Os casos de alunos perseguidos também são constantes, principalmente alunos que tiveram algum vínculo com professores que denunciaram as situações de assédio. No meu caso, comecei a sofrer pequenas retaliações desde que me tornei bolsista da professora Dra. Cristina Dunaeva. Estas retaliações cresceram e atingiram níveis perigosos, caracterizando-se como perseguições depois das apresentações de minhas performances. Em outro caso o professor diretor xingou e ameaçou publicamente um aluno bolsista, inclusive este foi denunciado durante assembléia estudantil e registrado em Ata de Reunião, que eu sempre solicitei ao C.A. do curso, mas nunca me entregaram, provavelmente por conivência com a situação ou por medo de retaliações. No caso do racismo e homofobia, a URCA tem um longo histórico em todos os campi desta IES. Como o caso de um aluno gay de História que foi perseguido com pichações nas paredes dos banheiros e até mesmo com ameaças de morte racistas deixadas em bilhetes no seu caderno durante intervalo de aulas. Posso citar também uma ativista negra, do Pretas Simoa – Grupo de Mulheres Negras do Cariri, que foi processada pelo departamento de História da URCA, por estar denunciando o descaso da Universidade diante dos casos cada vez mais agressivos de racismo dentro de seus espaços. Uma professora e sua companheira também já foram vítimas de pichações racistas nas paredes das salas de aula.
T. Angel: Parece-me que o uso da nudez, fluído corporal (sangue, no caso) e manuseio do corpo através de perfurações, tenha sido um problema para a instituição. O que é um problema quando isso parte de uma universidade de artes, pois aponta um desconhecimento sobre toda produção no campo da performance art, principalmente aquela que vem sendo produzida pós Segunda Guerra Mundial. Fale-nos um pouco sobre isso.
Edilson Militão: Lembro-me de um texto elaborado por um grupo de alunos de uma disciplina ministrada por Lucio Agra, na Graduação em Comunicação das Artes do Corpo da PUC-SP em 2008/2009. O texto, no qual tive acesso durante uma aula da disciplina optativa de performance, que cursei no início de 2016, no C.Artes da URCA, é intitulado de “Kit Performance”. O kit reúne um conjunto de objetos-clichê, como “Tinta-sangue” e fotos de performers pelados, que podem ser encontrados com frequência em muitas performances, ajudando a refletir sobre o próprio processo de repetição e redundância pelo qual passa qualquer forma de arte… Estudando as ações produzidas por vários precursores da performance arte, datando desde as primeiras manifestações do Futurismo italiano, é fácil reconhecer os tipos de transformações que esta linguagem artística trouxe à arte produzida no século XX, principalmente após Segunda Guerra. Allan Kaprow, por exemplo, um dos pioneiros no estabelecimento da performance arte, conceituou alguns de seus Happenings com a ideia de não-arte, justificando a negação aos meios tradicionais de produção de arte, buscando englobar no seu trabalho tudo que não era aceito institucionalmente como arte e até mesmo objetos que não possuem características que os qualifiquem, a priori, como arte. Roselee Goldberg, que tem um livro base para a historiografia internacional da linguagem, fala do uso da performance como meio para artistas, de diferentes épocas, tornarem públicas suas ideias mais transgressoras, citando a performance como ação artística usada como arma contra os convencionalismos da arte instituída e meio de destruição de estruturas vigentes, estabelecendo novos rumos para a arte. Quanto ao uso de nudez e sangue na performance, basta citar Marina Abramovic ou o Grupo EmpreZa, que exploram as relações de limites do corpo, pondo o corpo em risco, etc. Os Acionistas Vienenses e suas ações, destacando a performance de 1968 “Kunst und Revolution”, foi apresentada dentro de uma aula numa Universidade na qual os performers estão nus, se cortando com lâminas e expelindo os mais diversos fluidos corporais como sangue, urina e fezes. Na História da Linguagem da Performance são inúmeros exemplos de performances que exploram o corpo e seus fluídos como material e suporte, colocando os corpos em risco de vida, corpos cortados, cagados, mijados, queimados, NUS.
T. Angel: Houve um caso de tentativa de agressão após uma performance que você realizou. Conte-nos sobre isso. Fale sobre o trabalho e de onde partiu a tentativa de agressão.
Edilson Militão: Sim. Criei e apresentei uma performance alegórica à uma lenda contada por minha avó na infância, uma senhora muito católica que habitou região de floresta na Chapada do Araripe, na qual espíritos celestes da primeira hierarquia dos anjos, os serafins, segundo as crenças da teologia católico-cristã, perfuravam as pontas dos dedos das crianças desobedientes aos seus pais. Num dado momento, no decorrer das ações da performance, introduzi agulhas nas pontas dos dedos das mãos. Durante as perfurações eu me deparo com a presença do SAMU dentro do pátio do campus. Os paramédicos disseram que foram chamados por um professor que os informou haver um aluno sofrendo de crises e transtornos psicológicos. Ativistas Movimento de Mulheres Negras do Cariri, Pretas Simoa, estavam presentes para assistir a performance e precisaram intervir para que eu não fosse levado pelo SAMU. Pouco tempo depois, duas viaturas da PM entraram no campus. Policiais com armas em punho dentro de uma Universidade Pública. Um professor do Departamento de Letras assistia a performance enquanto gravava imagens de várias pessoas integrantes de movimentos sociais intervindo entre os policiais para explicar que se tratava de uma performance e não de um crime, como eles haviam sido informados. Depois de muita conversa, SAMU e PM foram embora e a apresentação terminou. Fui esperar o ônibus na porta da Universidade, junto com amigas do Pretas Simoa, e 3 homens nos abordaram. Um deles pegou no meu ombro e me sacudiu dizendo que eu estava manchando a imagem do Diretor do Centro. Os outros dois chegaram por trás na tentativa de nos cercar, concordavam entre si aos gritos e diziam que estavam defendendo a honra do Diretor. Minhas amigas entraram na frente e peitaram os 3 caras que tentavam a todo custo me alcançar por trás delas. Foi aí que corremos todas para dentro da Universidade novamente, para dentro da sala da direção. Um dos agressores nos seguiu até dentro da sala e, na frente de todos os presentes, cumprimentou com intimidade e cordialidade o Diretor do Centro de Artes. Nesse momento a segurança foi chamada e o agressor que nos seguiu foi colocado para fora. Foi feito um B.O. por tentativa de agressão na porta do campus, junto com as testemunhas que presenciaram a cena, onde consta que os agressores citavam veementemente a defesa do Diretor.
T. Angel: Há casos no Brasil de artistas da performance que sofreram sérias ameaças, inclusive de morte, o que você pensa sobre tudo isso?
Edilson Militão: Acima de tudo demonstra o quanto é necessário este tipo de ação artística. Quando nos propomos a trabalhar com um tipo de arte que desafia normas e regras, é comum que ocorram reações violentas. Mas se este tipo de agressão e ameaça vem de pessoas que estão dentro de uma Universidade estudando e lecionando arte, é muito mais complexo porque não é falta de informação e não é mera opinião, é sobre conhecimento e responsabilidade.
T. Angel: Sabemos que uma rede de artistas da performance – que trabalham com a radicalidade do corpo – solidários a sua situação estão te apoiando, como você enxerga essa rede de afetos que tem sido construída?
Edilson Militão: É lindo tudo isso, uma luz no fim do túnel, uma boa esperança, que até me proporcionou um novo sentido para continuar estudando performance e seus processos de criação e para continuar me impondo contra sistemas catedráticos e fascistas de educação. Ganhei até uma orientadora babado, Pêdra Costa, com quem tenho me correspondido por Skype e trabalhado conceitos de performance através da experiência dela, além de me orientar em meio a todo esse processo acadêmico e artístico que estou trilhando. Você também é uma dessas pessoas queridas e babadeiras que admiro o trabalho. Na verdade, é um rizoma de corpos dissidentes, uma cartografia sentimental de existências que já lutavam contra os sistemas de poder. Pessoas que me influenciaram e que eu admirava o trabalho desde que comecei a ter contato com arte. A rede de solidariedade que se formou depois disso tudo é um dos meus maiores aprendizados, uma das maiores vivências que eu, enquanto estudante de arte pobre do interior do Ceará, nem imaginava que poderia acontecer, mas que felizmente aconteceu.
T. Angel: Qual desfecho você espera para essa calamitosa situação?
Edilson Militão: Quero que a URCA reconheça a violência à qual fui exposto no centro de artes. Quero que a URCA-C.Artes pare de criminalizar e patologizar as vítimas de agressões racistas e homofóbicas, que parem de maquiar os casos de violência e abusos de poder. Quero ter o direito de estudar. Quero meu direito à UNIVERSIDADE, meu direito de estudar arte, pesquisar arte, me licenciar, produzir arte sem ameaças, sem abusos, nem perseguição. Quero menos hipocrisia, quero meu direito a fala que vem sendo negado historicamente, e quero ocupar meu lugar na Universidade.
Link da moção de repúdio:
http://portalabrace.org/1/index.php/informes/158-outros-informes/2555-mocao-de-repudio-enderecada-as-instituicoes-de-ensino-superior-de-artes-do-brasil