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janeiro 18, 2017
A era das “galerias-museus” por Ana Magalhães, Select
A era das “galerias-museus”
Artigo de Ana Magalhães originalmente publicado na revista Select em 21 de dezembro de 2016.
Transformação no sistema internacional da arte na última década aponta para uma reconfiguração da relação entre a produção, o mercado e as instituições artísticas
Estamos assistindo a uma enorme transformação no sistema internacional da arte na última década. Fala-se em uma reconfiguração da relação entre a produção, o mercado e as instituições artísticas. Os Estados Unidos são apontados como modelo de como esse sistema se comporta e, de fato, ao fazer um rápido panorama da situação norte-americana hoje, percebemos o quanto ela é sintomática de uma tendência à financeirização e à especulação da arte. Essa tendência parece cooptar as instituições artísticas, os museus e começa a inverter o papel do museu de arte moderna e contemporânea. Um dos sintomas dessa inversão é o novo modelo de galeria de arte. Um caso exemplar é o da recém-inaugurada sede da famosa Hauser & Wirth no centro de Los Angeles, na Califórnia (em franco processo de gentrificação).
Num momento em que a grande metrópole da Costa Oeste dos EUA ameaça roubar o brilho de sua irmã do Leste (Nova York), com a expansão do seu chamado Arts District – que hoje começa a se estender para grandes galpões industriais, antes abandonados, do outro lado do Los Angeles River –, a galeria suíça, fundada em 1992, uniu-se em sociedade ao ex-diretor do Museum of Contemporary Art (MoCA), Paul Schimmel, para implantar sua sede ali. Ao mesmo tempo, a Hauser & Wirth prepara-se para “mudar de casa” em sua sede nova-iorquina, ocupando até o ano que vem os espaços do antigo DIA Center, na região de Chelsea.
Para a inauguração da sede de Los Angeles, em março de 2016, Paul Schimmel convidou a também historiadora da arte Jenni Sorkin para conceber uma exposição que reunisse apenas artistas mulheres, que nos últimos 70 anos dedicaram-se à escultura abstrata. Nos espaços de 2 mil metros quadrados de uma antiga fábrica produtora de trigo reformada com a consultoria de arquitetos renomados, a exposição Revolution in the Making: Abstract Sculpture by Women, 1947-2016 apresenta obras históricas de artistas mulheres consagradas ao longo da segunda metade do século 20, ao lado de artistas contemporâneas também consolidadas e de fama internacional. Até aqui, nada de muito surpreendente, se pensarmos na lógica do mercado internacional de arte hoje – ainda que alguns críticos considerem surpreendente o fato de a galeria privilegiar artistas mulheres dentro desse contexto. Mas sabemos que essa tem sido uma estratégia do mercado de criar “novidades”. Curiosamente, nesse caso, apenas 20% das obras em exposição estavam disponíveis para venda, pois o restante foi emprestado de museus norte-americanos (tais como o Whitney Museum, de Nova York, e o próprio MoCA de Los Angeles). Além disso, a galeria está no auge de suas aquisições de espólios de artistas contemporâneos, dentre eles a recente incorporação do Projeto Lygia Pape, artista que é objeto da mostra em cartaz na galeria neste exato momento (setembro de 2016).
O que surpreende é o fato de entrarmos num espaço que, além de se assemelhar a uma área de museu, usa das estratégias do museu de arte contemporânea para se legitimar. A mostra é acompanhada de um catálogo primoroso, com ensaios curatoriais encomendados a estudiosos reconhecidos – o que certamente fará dele documento importante para quem vier a estudar o assunto no futuro. Tudo isso acompanhado de um espaço com equipamentos museológicos: a monitoria das salas, a livraria (que, em seu press release, a galeria orgulhosamente apresenta como “a primeira casa especializada em livros de arte de Los Angeles”) e um restaurante. Por fim, a mostra teve seis meses de duração, e este será o padrão adotado pela Hauser Wirth & Schimmel para seu programa de exposições.
Situada num circuito que envolve o próprio MoCA e sua extensão (o Geffen, que no primeiro semestre abrigava uma mostra muito inteligente sobre a produção contemporânea dos anos 1990), e museus como o também recém-inaugurado Broad Museum (outro sintoma dessas inversões do sistema da arte), a galeria se abre para um público mais amplo do que aquele, muito seleto, que frequenta o espaço tradicional de uma galeria. Mas ele se distingue muito daquele que hoje vemos nos museus norte-americanos, fruto de um franco processo de massificação do museu de arte, e para quem o que se mostra também é massificado. Estaríamos num processo de substituição da função do museu de arte contemporânea pela da galeria comercial? Qual a finalidade desse processo, em que as instituições públicas e de interesse público parecem relegadas ao segundo plano, e vemos a criação de galerias a quem são entregues os legados da produção artística atual? É nelas que se desenha, a partir de agora, a narrativa da arte do século 21? Terão elas o compromisso de documentar essa história?
Não se trata aqui de discutir o mérito da curadoria da exposição apresentada, nem tampouco das obras e artistas – que eram excepcionais. Mas, nesta nova configuração do sistema das artes, seria fundamental discutir o que se espera de um museu de arte contemporânea.
Ana Magalhães é historiadora da arte, curadora e professora do MAC-USP, e entre abril e junho de 2016 foi pesquisadora convidada do Getty Research Institute, em Los Angeles, Califórnia