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novembro 17, 2016
Em retrospectiva, Carmela Gross transforma violência em glamour por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Em retrospectiva, Carmela Gross transforma violência em glamour
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 15 de novembro de 2016.
Dolores não é ninguém. Ou talvez seja uma vítima qualquer estraçalhada pela cidade. Mas ela grita com a estridência de um neon vermelho. Enorme, o luminoso que Carmela Gross montou em sua retrospectiva agora na Chácara Lane, museu no centro de São Paulo, nem cabe na galeria.
Ficam do lado de fora, penduradas diante do trânsito na Consolação, as palavras "eu sou", enquanto dentro um "Dolores" brilha solitário. Essa não é uma quebra acidental entre sujeito e predicado.
Usando "lâmpadas de padaria", a artista reforça o anonimato da metrópole ao reescrever sórdidos dramas urbanos na linguagem publicitária, de luxo fajuto, que já dominou a paisagem paulistana.
"É a cidade que condensa a vida contemporânea e seus embates", diz Gross. "O neon é uma coisa brega, tem intimidade com o malfeito e, por isso, também é algo gritante, glamoroso. É a violência do real travestida de glamour."
Noutro neon, ela copia, com os garranchos do spray e os erros ortográficos, a pichação "us cara fugiu correndo". Mais sutil, uma instalação com lâmpadas fluorescentes amarelas espalhadas pelo chão lembra o minimalismo americano, mas na visão de Gross é um "desenho de observação de um drogado na rua" –no caso, são luzes que agonizam.
Esse choque, muitas vezes elétrico, entre a beleza reluzente da superfície e um ponto de partida violento ressurge com força na mostra, organizada por Douglas de Freitas, que cobre quase cinco décadas de trabalho da artista.
Uma das obras mais simples, e ao mesmo tempo mais densas, da exposição ilustra bem essa questão. O que parece ser a silhueta de uma cadeira metálica presa à parede, alusão a um trono, na verdade se vira para a sala, tal qual uma porta numa dobradiça, lembrando uma arma de fogo apontada para o espectador.
"É a dissolução do poder virando um instrumento agressivo", diz a artista. "É algo que pulsa o tempo todo."
ALTAR MARGINAL
Não espanta, aliás, que os trabalhos de Gross, que se firmou no cenário artístico nas décadas de 1980 e 1990, sejam um reflexo do auge da violência urbana e do crescimento desenfreado e sem planejamento de São Paulo, em grande medida motor do crime e da desigualdade.
Elementos ameaçadores à ordem da burguesia urbana enumerados num ensaio clássico de Marx ressurgem numa obra de Gross estampados em chapas metálicas que lembram placas de rua –mendigos, prostitutas, donos de bordel, herdeiros em ruína, presidiários, vagabundos.
Na mesma sala, está um arsenal de carimbos que reproduzem com exatidão pinceladas, traços e linhas de artistas como Picasso e Dubuffet.
Ali a artista põe em contraste seu altar à marginalidade vista como um dos pilares da vida nas metrópoles e uma tentativa de atacar com a história da arte os mecanismos burocráticos da repressão da ditadura –o trabalho é do final da década de 1970.
Mas Gross também aponta para o futuro. Sua obra mais nova é uma escada que liga o museu ao quintal de uma escola vizinha, uma ponte entre a potência criativa desses dois universos que andam em baixa em tempos raivosos. A hora do recreio, com crianças agitadas lá fora, pode ser o melhor momento de ver a mostra.
CARMELA GROSS - Arte à Mão Armada
QUANDO de ter. a dom., das 9h às 19h; até 8/1/2017
ONDE Chácara Lane, r. da Consolação, 1.024, tel. (11) 3129-3574
QUANTO grátis