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novembro 6, 2016
32ª Bienal de São Paulo: gritos em silêncio por Maria Hirszman, Estado de S. Paulo
32ª Bienal de São Paulo: gritos em silêncio
Artigo de Maria Hirszman originalmente publicado no jornal Estado de S. Paulo em 18 de outubro de 2016.
Edição do evento, em cartaz até 11 de dezembro, assume o pensamento crítico e a dúvida como objetos de pesquisa
A cada nova edição da Bienal de São Paulo, ressurge um antigo porém crucial debate sobre o futuro e a pertinência da exposição, que um dia já teve o papel de atualizar o público brasileiro em relação às tendências e destaques da produção mundial e hoje traz em seu bojo as contradições, conflitos e paradoxos que parecem acompanhar a arte contemporânea em sua crise permanente. Tal esforço, cada vez mais raro, para compreender as possibilidades e limites da prática artística, já justificaria sua existência. Afinal, qual outra instituição no país suscita algum debate sobre os rumos, a função e o estado da arte, no Brasil e no mundo?
Essa reflexão parece ganhar ainda mais relevância na 32.ª edição da mostra, que pode ser visitada até 11 de dezembro. Isto porque sua proposta curatorial é norteada pelo conceito de incerteza, assumindo a dúvida, o questionamento e o pensamento crítico como objeto de pesquisa e estopim para a criação. Tal liberdade contrasta com a hegemonia crescente do mercado, e torna reflexões como as propostas pela mostra – intitulada Incerteza Viva – uma das raras válvulas de escape ao senso comum e à busca do sucesso fácil que caracterizam as feiras de arte que brotam pelo mundo afora.
É inevitável uma sensação de incompletude quando se percorrem os corredores da 32.ª Bienal. Afinal, trata-se de uma leitura cheia de particularidades e sujeita a falhas e não de um produto acabado. Com suavidade, sem impor barreiras ou rotas preestabelecidas, curadoria e arquitetura situam no espaço obras em relação, que criam linhas de reflexão sobre temas importantes na arte e na vida contemporânea, como ecologia, violência, trabalho, sexualidade e utopia. A própria estratégia adotada pelos curadores de comissionar o maior número de obras possíveis, com cerca de 70% dos trabalhos expostos tendo sido especialmente realizados para o evento, contribui para essa sensação de multiplicidade. Ao invés de uma confortável edição de criações já prontas, houve algo de aposta, de improviso, permitindo a transformação do que ainda era projeto poético em obra concreta.
Não se trata de uma Bienal que vira as costas ao espetáculo, mas tampouco cede a ele como objetivo último. É interessante a opção de separar em espaços diferentes obras de um mesmo artista. O critério não é autoral e nem temático. É quase afetivo, como se pode perceber, por exemplo, na aproximação física entre a fotografia de uma caveira no deserto, de autoria de Pierre Huyghe e intitulada Colina Índio Morto (2016), e as dezenas de réplicas de caixas de fósforo esculpidas por José Bento com as madeiras nativas do Brasil. Afinal, ambos os trabalhos jogam com a noção de extermínio e desnudam nossa tendência a abolir as diferenças ou naturalizar a destruição, seja ela ambiental ou política.
As possibilidades de conexão são múltiplas, mas alguns aspectos se sobressaem, como uma tendência à suavidade, quase a uma certa melancolia, mesmo quando estamos diante de críticas ácidas aos desmandos do mundo. É o caso, por exemplo, de Transbordamento: Mapa Universal (2016), obra de Rikke Lutter. Trata-se de um grande painel de azulejos em tons suaves instalado na grande parede ao fundo do primeiro andar do pavilhão. À primeira vista ele parece delicado, quase ingênuo. Só aos poucos, dedicando um pouco de tempo à leitura e observação, o visitante percebe que se trata de uma denúncia gráfica e textual sobre a exploração desigual e predatória das zonas do universo que, apenas teoricamente, pertencem a toda a humanidade, como o espaço sideral e o fundo do mar.
Como em outras edições do evento (em especial a 27.ª, cuja equipe contou com a participação de Jochen Volz, atual curador da mostra, e a 30.ª), nota-se também uma presença marcante de trabalhos desenvolvidos em série, como uma espécie de reconhecimento que é necessário olhar também para o trabalho cotidiano, permanente, obsessivo da prática artística. São como universos de pensamento com lógicas muitas vezes subjetivas ou particulares, que rejeitam o pragmatismo.
A lista de artistas incluídos neste grupo é grande, a começar pela seleção exaustiva de gravuras produzidas vagarosamente, ao longo de anos, de Gilvan Samico (1928-2013), sínteses preciosas de elementos da cultura popular e um sofisticado universo mítico. Pontuando a mostra, é possível encontrar ainda uma série de pequenos e fascinantes mundos poéticos particulares, como Um Outro Livro Vermelho, de Lourdes de Castro e Manuel Zimbro. Wilma Martins também concilia com delicadeza universos apenas aparentemente opostos em seus delicados desenhos e pinturas, aproximando o universo cotidiano da vida doméstica à fragmentos um tanto idílicos da vida selvagem.
Pode-se dizer que a 32.ª Bienal é uma mostra que grita praticamente em silêncio. Não à toa uma das mais tocantes críticas presentes no evento à escravidão e ao colonialismo, de autoria de Grada Kilomba, é um filme legenda. Esta edição também parece ter obtido mais sucesso do que as anteriores na sempre desejada interação com o entorno. A relação, que em edições passadas parecia um tanto forçada, parece fluir de forma natural em trabalhos como os de Eduardo Navarro e Rachel Rose. Em Everything and More, a artista norte-americana cria uma instigante fusão ao projetar sobre uma tela translúcida, voltada para o Parque, imagens geradas a partir da narrativa de um astronauta sobre as experiências visuais que teve ao regressar à Terra. A percepção da paisagem concreta, real, se dá aos poucos, numa fusão entre o aqui e o agora e uma sucessão de imagens de teor abstrato e sentimental, inconstantes e turvas como o nosso tempo.
32ª BIENAL DE SÃO PAULO
Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Pq. do Ibirapuera, portão 3; 5576-7600. 3ª, 4ª, 6ª e dom., 9h/19h; 5ª e sáb., 9h/22h. Grátis. Até 11/12