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outubro 12, 2016
Brígida Baltar expõe obras inspiradas em transplante de medula por Nani Rubin, O Globo
Brígida Baltar expõe obras inspiradas em transplante de medula
Matéria de Nani Rubin originalmente publicada no jornal O Globo em 27 de setembro de 2016.
Em 'Irmãos', artista carioca faz uma espécie de diário de cura por meio de bordados e esculturas
RIO — Brígida Baltar se olhou no espelho e não pôde evitar o espanto. Pelinhos que nunca existiram antes despontavam de sua orelha. Dias depois, o que parecia uma sombra escura sobre os lábios revelou-se, num exame mais detalhado, “um bigodão”. Ainda sob o efeito do choque de ver sua aparência transformada, ela pegou uma caixa de lenços masculinos que um amigo acabara de lhe presentear e pôs-se a bordar autorretratos, nos quais os pelos ganhavam dimensões extraordinárias, ficcionais. Era o início de um trabalho profundo e delicado, que chega nesta terça-feira ao público com a inauguração, na Galeria Nara Roesler, da exposição “Irmãos”.
A primeira individual da artista em quatro anos faz já no título referência ao transplante de medula a que se submeteu em março de 2015, tendo como doador seu irmão, o acrobata Claudio Baltar. Os pelos foram uma reação aos imunossupressores. Durante o processo que antecedeu e se seguiu ao procedimento, ela sofreria outros incômodos, como aftas, hematomas, petéquias (pequeninas manchas vermelhas provocadas pela baixa de plaquetas). Tudo, pelas suas mãos, viraria arte.
— Tenho pensado em como essa mostra reflete o fato biográfico, mas ao mesmo tempo as obras não falam explicitamente disso. Elas levam para outro lugar, de ficção, de percepção visual. Quem não souber o que aconteceu pode não perceber nada sobre o transplante. Essas pessoas verão abstrações — diz a artista, que despontou na cena carioca nos anos 1990 com a série “Umidades”, em que coletava elementos impalpáveis, como neblina e maresia, gerando fotos e filmes oníricos.
Brígida não fala a palavra leucemia. Prefere enfatizar o processo de cura da doença, diagnosticada em novembro de 2012. Os dois anos e meio até o transplante foram duros, mas com momentos de leveza. Natais e réveillons seguidos foram passados no hospital — mas é rindo que se lembra de como o marido contrabandeou peru, vinho e outras delícias. Esteve pelo menos uma vez entre a vida e a morte, e é o afeto de médicos, enfermeiros, família e amigos que recorda imediatamente. Chegou a trabalhar nos intervalos entre as internações, mas conta ter feito “muito pouco”:
— Só uma coisa vinha à cabeça: saber se ia ficar viva ou não. Tive medo, tristeza, chorava. Embora a gente saiba sobre a morte, e aceite, porque ninguém escapa, quando se está diante dela é diferente, muda tudo. Tem um instinto de sobrevivência. Você não quer viver aquilo — diz ela, que completa 57 anos em novembro.
Somente depois do sucesso do transplante Brígida voltou a criar. Ela ressalta que 2012 havia sido “um ano pleno”: em fevereiro, abriu uma mostra em São Paulo, e, em agosto, três meses antes do diagnóstico, a individual “O amor é um pássaro rebelde”, no Parque Lage. O intervalo de quatro anos seria, diz, um período razoável, mesmo em condições normais, para um novo ciclo de trabalhos.
Estes se desenvolveram rapidamente após a série inicial “Autorretrato com pelos”, que ela considera “um pouco literal”.
— Estava careca, por conta da quimioterapia, e com pelos nascendo, então parece um autorretrato masculino — diz. — Depois fui amadurecendo e os trabalhos ficaram mais sutis.
MITOLOGIA E MEDICINA LADO A LADO
A sutileza nasceu do conceito de quimerismo, que a medicina pegou emprestado da mitologia grega (a Quimera é um monstro híbrido, comumente retratado com duas cabeças e cauda de serpente). O termo é usado para descrever os exames pré-transplante, em que se verifica a compatibilidade entre doador e receptor, e após o procedimento, para checar a porcentagem de células do doador no corpo do receptor:
— Os médicos dizem que uma pessoa transplantada está na verdade com outro ser dentro de si. No meu caso deu super certo. Eu estou com 100% do meu irmão dentro de mim. Mas você desenvolve estranhezas no corpo, como os pelos. A gengiva retraiu, criei aftas crônicas... Coisas pequenas diante do fato de estar viva.
Instigada pelo quimerismo, Brígida bordou sobre linho a série “A quimera das plantas”, em que uniu espécies; em seguida, expandiu a série para vegetais. São trabalhos que chamam atenção pelo colorido e pela fantasia. Ainda com o pensamento na quimera, passou para as esculturas em bronze. São quatro, entre elas a que une dois corações de bananeira. Também fez uma quinta escultura, que chamou de “A mão que arde”, em óleo sobre bronze (a parte inferior é pintada de vermelha). O nome alude à ardência sentida por ela em partes do corpo, e a cor, ao tom que cobriu as mãos numa etapa do tratamento.
Nenhuma escolha foi aleatória. Os materiais se impuseram naturalmente e estão ligados ao tempo — à passagem dele; ou à sua perenidade.
— Foram quase três anos de espera para o transplante. Essa foi uma das razões que me fizeram optar pelo bordado, que tem um tempo lento. Minha avó foi costureira, minha mãe foi costureira, e acho que chegou o meu momento. Já o bronze foi em cima da ideia da eternidade do metal — exemplifica ela, fazendo uma ponte imediata para o afeto dos irmãos.
A exposição terá bordados das séries “As petéquias” e “Os hematomas”, e uma afta em porcelana. Nada é agressivo, tudo transparece tranquilidade:
— O transplante, apesar de todo o sofrimento, é muito belo. É um ato de doação. As células do meu irmão estão dentro de mim, então tem toda uma beleza nessa história.