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outubro 11, 2016
Exposição traz panorama da obra da artista gaúcha Maria Lucia Cattani, Zero Hora
Exposição traz panorama da obra da artista gaúcha Maria Lucia Cattani
Matéria originalmente publicada no jornal Zero Hora em 29 de setembro de 2016.
"Gestos e repetições", que será aberta em Porto Alegre, conta com obras em diferentes suportes produzidas dos anos 1980 a 2014
A artista Maria Lucia Cattani – que morreu em fevereiro de 2015, aos 56 anos, em decorrência de um câncer – gostava sempre de expor sua produção mais recente. Obcecada pelo ofício, criou até os últimos momentos obras vibrantes como seu temperamento pessoal.
Maria Lucia Cattani foi um dos destaques da geração 80
O legado humano e artístico de Maria Lucia Cattani
A exposição Gestos e repetições, que será aberta nesta quinta-feira (29/9), às 19h, na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo do Instituto de Artes da UFRGS (Rua Senhor dos Passos, 248), em Porto Alegre, dará ao público a oportunidade de ver trabalhos que não eram expostos há 20 ou até mesmo 30 anos.
Será uma panorâmica da produção de Cattani dos anos 1980 até 2014. Para isso, os curadores Maristela Salvatori e Paulo Silveira mergulharam no acervo da artista e pinçaram gravuras (uma especialidade dela), vídeos de artista, livros de artista e alguns desenhos, pinturas e objetos.
– Maria Lucia teve uma formação muito ligada à gravura, técnica que trabalha com uma matriz reproduzida "n" vezes. Ela sempre teve essa paixão pela reprodução, mesmo em trabalhos que são edições únicas. Criou padrões que se repetem nas obras com pequenas variações, como uma pequena matriz de borracha reproduzida 1,5 mil vezes, o que se tornou um recurso poético em seu trabalho. A repetição era um processo – diz Maristela.
A curadora destaca a perseverança de Cattani, que também foi professora do Instituto de Artes da UFRGS, em produzir mesmo em condições de saúde adversas, como as que experimentou, o que teria conferido "um significado maior a essa etapa final de vida":
– O trabalho dela é extremamente vibrante. Maria Lucia tinha uma energia, como pessoa, que transparecia. Se eu descrevo o fato de que ela usava formas que se repetiam, pode parecer uma coisa um pouco tediosa. Mas isso ganhava uma vibração e se transformava em outra coisa. São trabalhos de extrema poesia e leveza.
Um dos destaques da geração 80, a artista e professora Maria Lucia Cattani morre em Porto Alegre
Obituário por Francisco Dalcol originalmente publicado no jornal Zero Hora em 6 de fevereiro de 2015.
Ela lutava há mais de um ano contra um câncer. Velório está sendo realizado na Capela B do Cemiterio São Miguel e Almas. Enterro será sábado em Garibaldi
Maria Lucia Cattani, um dos nomes mais importantes da chamada geração 80 da arte gaúcha, morreu na madrugada desta sexta-feira, em Porto Alegre, aos 56 anos. Ela lutava há mais de um ano contra um câncer. A artista e professora está sendo velada na Capela B do Cemitério São Miguel e Almas (Oscar Pereira, 400). O enterro será realizado sábado, em Garibaldi, sua cidade natal, entre as 8h e 11h.
Nascida em 1958, artista visual e professora do Instituto de Artes da UFRGS na área de gravura com doutorado em Artes pela Universidade de Reading, na Inglaterra, Maria Lucia era casada com o artista inglês Nick Rands. Ela se iniciou artisticamente em pintura, mas logo ficou conhecida por seu trabalho gráfico e por livros de artista, vídeos e produções em outras linguagens.
– Difícil falar sobre o trabalho que faço. Procuro fazer trabalhos visualmente agradáveis – disse a ZH em 2009.
Depois de participar de mostras individuais e coletivas no Brasil e na Europa, a artista apresentou na 5ª Bienal do Mercosul, em 2005, um de seus trabalhos mais marcantes. Maria Lucia passou quase dois meses, trabalhando de oito a nove horas por dia, dedicada uma tarefa intensiva e minuciosa: carimbou inúmeros quadrados coloridos em uma grande parede para depois cavoucar o reboco recoberto por tintas. O resultado, uma grande painel cujos efeitos óticos eram percebidos com a aproximação e o afastamento diante da obra, foi apresentado no Armazém A5 do Cais do Porto.
– É tudo matemático, mas bem simples. Me interessa a manualidade, preciso estar em contato com o trabalho, usar as mãos – disse a ZH na época.
Essa experiência marcaria sua produção seguinte. Maria Lucia voltou a se dedicar à pintura, mas mantendo no processo sua conhecida precisão nos métodos como artista gráfica. Daí uma possível indicação para os que veem em suas obras plásticas semelhanças com a gravura.
Em 2013, a artista apresentou na Galeria Gestual a exposição Algumas Pinturas, que dava uma amostra da sua produção mais recente com 11 obras que demonstravam seu gradual reencontro com a pintura nos últimos anos. As telas tinham marcas e texturas de tinta organizadas em linhas e estruturas abstratas, por vezes sugerindo escritos de um idioma específico.
– Brinco que é o "cattanês", uma escrita que tem a ver com meu gesto, que tem muito a ver com meu ritmo. Trabalho com essa questão da marca, de marcar com certo modo sistemático, obsessivo. Tem esse gesto. A questão gráfica me acompanha, e o estêncil me dá a possibilidade da repetição. É um trabalho intimista. Tem que chegar perto – disse Maria Lucia, em entrevista a ZH na ocasião.
A exposição coletiva MAC 21 - Um Museu do Novo Século, atualmente em cartaz na Casa de Cultura Mario Quintana, apresenta um pouco da produção da artista. "Ela propôs que o trabalho fosse o seu Um Ponto ao Sul, uma caixa com 24 imagens gravadas, trabalho caracterizado pelo seu formato de livro de artista. Complementando o conjunto, a artista propôs outro trabalho seriado, consistindo em 24 varetas impressas e suspensas em um painel, caracterizados pelo mesmo rigor e refinamento artesanal", escreve o curador Paulo Gomes, no texto do projeto de aquisições de obras do Museu de Arte Contemporânea do Estado (MACRS) pelo Prêmio Marcantonio Vilaça, da Funarte.
O acervo do MACRS conta com cinco obras de Maria Lucia, entre gravuras, vídeo e livro de artista. Já o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) tem em sua coleção três gravuras da artista.
O legado humano e artístico de Maria Lúcia Cattani
Artigo de Eduardo Veras* originalmente publicado no jornal Zero Hora em 14 de fevereiro de 2015.
Artista e professora da UFRGS morreu no último dia 6 de fevereiro, em decorrência de um câncer
De Florianópolis, em postagem no Facebook, uma ex-aluna comenta a sorte de ter estudado com Maria Lúcia Cattani, a Dudu:
“Hoje, mais do que nunca, queria estar naquela enorme sala do 5º andar, esperando-a chegar – uma das pessoas mais extraordinárias com as quais já aprendi, uma das pessoas mais apaixonantes com as quais tive a honra e a felicidade de conviver”.
Um ex-monitor, que acompanhou Maria Lúcia nas aulas de gravura do Instituto de Artes (IA) da UFRGS, também faz referência a esse espírito apaixonante – vivo – que a professora fazia circular pela sala; ela encarnava, segundo ele, a própria ideia de “energia contagiante”.
Outro ex-aluno oferece um exemplo da generosidade da artista: em um encontro com Maria Lúcia, há pouco mais de um ano, ele demonstrou interesse por uma série de pinturas que ela vinha expondo. Meio sem aviso, no meio da conversa, Maria Lúcia deu as costas e saiu. Reapareceu dali a pouco. Tinha ido até o carro buscar um catálogo para presentear ao jovem.
Do Rio, um artista de projeção nacional que nem usa o Facebook pede emprestado o login de sua mulher. Quer reportar os primeiros encontros com Maria Lúcia, ainda nos anos 1980, e sublinha a afetuosidade que sempre enxergou na amiga:
“A informação do falecimento de Maria Lúcia Cattani, quase inacreditável, nos deixou chocados e entristecidos. Sua imagem sempre alegre, delicada e de intensa vivacidade contrasta com a notícia de sua morte precoce”.
Maria Lúcia Cattani faleceu na semana passada, em Porto Alegre, aos 56 anos, em decorrência de um câncer. Ela tinha descoberto a doença havia pouco mais de um ano, logo depois de ter se aposentado como professora do IA.
Em um grupo de e-mails, semana passada, um colega procurou sintetizar a tristeza que passou a acompanhar aquela turma de professores:
“Sinto que algo essencial está faltando ao nosso redor, que o ambiente foi mexido, alterado. E cada um de nós sabe que não está sozinho nesse sentimento de extrema consternação”.
Depoimentos como esse, e haveria muitos outros, ajudam a fixar uma percepção comum sobre a artista e professora nascida em Garibaldi. Era doce e gentil, atenta e atenciosa. Maria Lúcia tinha sempre uma nota animada na voz, o espírito alegre e cordial. Não que tivesse o riso fácil, era antes um sorriso sereno, apaziguador e apaziguado. Procurava encorajar os alunos: o olhar agudo conseguia encontrar o que dava para salvar em uma gravura que ia ficando ruim, mas sabia rir junto quando já não dava para salvar mais nada.
Também fui seu aluno. Lembro que ela parecia muito sincera em seus incentivos. Ficava de fato animada com a curiosidade dos alunos e ainda mais animada quando eles procuravam experimentar, se arriscando. Quando, muito tempo depois, participei de uma exposição na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, redescobri o quanto Maria Lúcia sabia ser parceira nos questionamentos de pesquisa. A exposição reunia artistas, que apresentavam seus documentos de trabalho, e teóricos, que apresentavam trabalhos de artistas sobre os quais pesquisavam e a documentação, tanto dos trabalhos quanto das pesquisas. Decidi mostrar o que acontecia quando eu cumpria as instruções elaboradas por uma dupla de artistas sem que eles nem soubessem que eu me dedicara a cumpri-las. Segundo os comandos, eu devia “atacar” um determinado livro: riscar, rasgar, colar e esfregar no chão algumas de suas páginas. Documentei essa ação com uma série de fotografias e apresentei o próprio exemplar do livro “atacado”. A documentação ficou muito boa, graças à ajuda de um amigo fotógrafo (profissional) e de um professor artista (hábil na montagem). Houve quem torcesse o nariz: estava tão bom que parecia um “trabalho”, uma “obra”. Maria Lúcia foi a única pessoa que pareceu realmente interessada em discutir o que havia acontecido. Veio me procurar e perguntou: era para ser um trabalho? Mas poderia ser? Ou não? Quem era o autor? Onde eu achava que “estava” o trabalho? Era um problema a documentação ter ficado bonita? Eu não tinha respostas muito firmes; na verdade, as minhas perguntas eram as mesmas que as dela, mas ela vibrava com cada pergunta, e também não tinha respostas concretas. O que ela tinha era vontade de saber – e um grande entusiasmo.
Comentário de outra professora naquele mesmo grupo de e-mails:
“Os que conviveram com a Dudu e com suas convicções diante da vida a da arte sabem das lições que aprendemos e que temos a missão de levar adiante!”.
Como artista, Maria Lúcia fez pintura, livros de artista e vídeos, mas se destacou sobretudo na produção de gravuras e em seus desdobramentos. Tinha um trabalho ao mesmo tempo forte e delicado, sensível e rigoroso, e que se erguia justamente a partir de uma estimulante série de paradoxos.
Com pleno domínio da técnica de gravura, Maria Lúcia empenhou-se em subverter as particularidades essenciais dessa categoria (gravura, grosso modo, é a arte em que se fixa uma imagem sobre uma matriz, como madeira ou metal, para depois transferir esse desenho para outro suporte, quase sempre papel). A gravura de Maria Lúcia justamente colocava em xeque questões como a possibilidade de impressão e reimpressão, a relação entre matriz e cópia, o original e o único, o gesto, o corte, a incisão.
Em seus trabalhos mais conhecidos, ela carimbava milimétrica e obsessivamente um mesmo quadradinho, com as mesmas pequenas linhas, tudo igual mas tudo diferente, com sutis mudanças de cor e de tom, de pressão e impressão. Ela cortava para tornar mais leve. A precisão matemática se convertia em beleza. Mais do que uma partitura, menos do que um alfabeto, oferecia uma melodia quase minimalista, o acúmulo e a repetição fazendo aflorar a grandeza dos pequenos gestos. Feito um sorriso sereno.
* Professor Adjunto do Instituto de Artes da UFRGS