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setembro 28, 2016
Bienais e iconofobia por Sheila Leirner, Estado de S. Paulo
Bienais e iconofobia
Post de Sheila Leirner originalmente publicado no blog Arte, aqui e agora no jornal Estado de S. Paulo em 27 de setembro de 2016.
Por falar em “faltar arte e sobrar ideologias” na 32ª Bienal de São Paulo (como está no artigo de Rodrigo Naves para o Caderno 2) , e em “visão bem pobre daquilo que se poderia aguardar como ‘a última palavra em arte hoje’ ” (como está no artigo de Aracy Amaral), publicamos aqui, na íntegra, mais uma entrevista recente de Rosalinda Fumarola ao jornal imaginário Valor Elevado. Fumarola é uma crítica de arte, curadora e gastrônoma ítalo-brasileira, também inventada por mim, que vive e trabalha entre Milão e São Paulo.
Valor Elevado – Como se manifesta, nas bienais e exposições de arte contemporânea, a iconofobia (o medo das imagens) à qual a senhora se referiu em seu artigo para o Corriere della Sera?
Rosalinda Fumarola – No resultado. Dá para ver claramente a diferença entre uma exposição feita por alguém diretamente apaixonado pelo objeto do seu trabalho (a arte) e alguém dominado apenas pelo amor à estratégia que lhe permitiu exibir o objeto deste trabalho. Fica tudo impresso, marcado… até mesmo na maneira de criar percursos e analogias entre as obras. No segundo caso, geralmente a escolha resta comprometida, as exposições tem pouca arte ou são frias, às vezes tornam-se bobocas porque se levam demasiadamente a sério. Mas são sobretudo destituídas de alma.
V.E. – Os trabalhos “difíceis” contribuem para que o público se afaste de manifestações do gênero?
R.F. – É sobre isso que eu queria falar: o público. Não são os trabalhos “difíceis” que afastam o público das manifestações do gênero. É a maneira como estes trabalhos são usados para criar uma estratégia de decepção.
Em meio a tantas denúncias ecológicas, políticas, etc., que saídas apontam as obras que enchem as Bienais?
V.E. – O que é esta estratégia?
R.F. – Veja, nos anos 1970/1980 só se falava na “Era da Desconfiança”, que vinha da literatura contestatária, do nouveau roman – com a crítica Barthesiana, Nathalie Sarraute, Robe-Grillet, Claude Simon, etc. – e que desembocava de certa maneira nas artes plásticas por meio da arte conceitual advinda não apenas de Duchamp, mas justamente da relação entre arte e literatura. Foi aí, em meio à desconfiança gerada entre leitor e autor ou entre público e artista, que nasceu a arte desmaterializada que, no fundo, nada mais era do que puro namoro entre arte e literatura. Hoje, como não existe mais nada para contestar dentro da arte – só no planeta – infelizmente entramos na “Era da Frustração” na qual, não apenas os artistas mas, sobretudo os que detém o poder institucional fazem exata e propositalmente o oposto daquilo que o público espera. Saindo de seus secretos e inatingíveis “conciliábulos de especialistas”, eles parecem dizer: “Você quer isto? Ah! Então não vai ter!” Trata-se de algo que, além de perverso, é a expressão máxima da coqueteria, coisa da ordem de uma sedução barata. O problema é que, sob o manto de uma aparente postura crítica séria, construtiva e politicamente correta, resta para o espectador apenas uma visão niilista. O que, paradoxalmente, não pode ser mais destrutivo e incorreto. Se não, em meio a tantas denúncias ecológicas, políticas, etc., que saídas apontam as obras que enchem as Bienais?
V.E. – Antes de falar sobre os trabalhos, pergunto então à senhora: o que torna iconofóbico um curador? Um curador, por exemplo, que na apresentação de uma bienal escreve sobre tudo, menos sobre arte?
R.F. – A iconofobia ou o medo das imagens é uma coisa antiga que remonta à crise do iconoclasmo bizantino nos séculos 8 e 9, tem uma história complexa no mundo judaico, árabe e cristão, passa pelas sociedades descritas por Walter Benjamin e McLuhan e se desenvolve em nossa época inclusive entre os fundamentalistas. Ninguém está isento dos seus perigos, menos ainda os curadores de grandes exposições que são obrigados a lidar com a enorme diversidade no meio de uma quantidade brutal de imagens. Se o curador for também um intelectual, aí o resultado pode ser catastrófico, pois os mais tocados pela tal fobia são estes, não me pergunte porque. Conheço vários para quem é muito reconfortante o refúgio apenas naquilo que conhecem…
V.E. – Isso pressupõe uma vocação…
R.F. – Eu ouvi uma entrevista do falecido sociólogo Pierre Bourdieu a respeito dos políticos. Dizia ele que existem os que (no caso, ele usou Segolène Royal como exemplo) embora se mostrem de esquerda, são – por sua personalidade, psicologia, experiência de vida e sensibilidade – de direita. E vice-versa. No caso dela, deixa supor Bourdieu, foi por oportunismo que inclinou-se à esquerda, onde para uma mulher é mais fácil vencer. Eu penso o mesmo sobre certos críticos e curadores. Há pessoas que, nem sempre por oportunismo, mas talvez apenas por desconhecimento de suas próprias capacidades, tornam-se críticos ou curadores quando – por suas características específicas – deveriam estar na universidade, no trabalho intelectual, na pesquisa ou em outros lugares. Lugares em que o amor, o prazer, a vivência, a criatividade, a experiência e a disposição subjetiva para a arte não são condições necessárias para um trabalho bem sucedido. Ninguém é obrigado a ser inventivo, sensível e apaixonado como é necessário tanto ao bom curador quanto ao artista. Ninguém é obrigado a amar ou estar profundamente envolvido com a arte. Por isso há outras profissões…
Existe coisa mais revolucionária do que natureza morta no meio desta “nova academia” da arte ideológica?
V.E. – Ainda subsiste espaço para o talento em antigas técnicas, como desenho, gravura e pintura? Ou eles são subjugados pela ditadura da, digamos, “expressão contemporânea”?
R.F. – Neste ponto sou categórica: há espaço sim! E se ditadura existe, deve estar com os dias contados. Técnicas jamais mediram contemporaneidade! Desenho, gravura, pintura, escultura são eternos. O que mede a pertinência ou a “contemporaneidade” de uma técnica é a sua linguagem. Um trabalho pode ser acadêmico, obsoleto ou retrógrado usando instalação com sucata e outro completamente revolucionário com pintura à óleo sobre tela. Eu, por exemplo, recomendaria hoje a um pintor talentoso fazer naturezas mortas. Existe coisa mais revolucionária do que natureza morta no meio desta “nova academia” da arte ideológica?
V.E. – A história será magnânima com esta “nova academia”? Que espaço as suas manifestações ocuparão nos livros de história da arte?
R.F. – Isso eu não sei responder. Se pensarmos na história hoje, ela foi magnânima e também não foi. Destacou e apagou muita coisa, e nem sempre com justiça. A história não é fiável. A crítica também não, porém entre uma e outra, penso que esta estará mais apta a esse julgamento…
V.E. – A arte contemporânea – essa arte contemporânea politicamente correta – dispensa o mercado. Isso é bom ou mau?
R.F.– Será que ela dispensa o mercado? Veja: quando galeristas espertíssimos como Iris Clert ou Leo Castelli nos anos 1950 e 1960 – só para dar dois exemplos pois existem muitos, hoje inclusive no Brasil – quando eles expuseram obras (e mesmo “performances”) totalmente invendáveis de Yves Klein ou dos artistas pop americanos, isto reverteu de forma extremamente positiva para os artistas e os galeristas em termos de mercado. Porque? Apenas porque estes mesmos artistas, num segundo tempo, iriam criar obras vendáveis. Altamente vendáveis e por preços astronômicos. O que acontece na bienal não é muito diferente: você expõe ali uma sucata gigante invendável, fica famoso e já pode começar a fazer sucatinhas mais amenas, em série, como trabalho alimentar. Que eu saiba, o mercado e a instituição – organizações cujos atributos são a “pura certeza” jamais são dispensados. Mesmo quando os artistas e a sua “arte da incerteza” parecem se colocar contra eles…