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junho 9, 2016
Obra de Tunga não ficava restrita ao discurso autorreferente da arte por Fabio Cypriano, Folha de S. Paulo
Obra de Tunga não ficava restrita ao discurso autorreferente da arte
Análise de Fabio Cypriano originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 6 de junho de 2016.
O percurso de Tunga é singular na arte brasileira. Por um lado, ele deu continuidade às propostas mais radicais de Lygia Clark e Hélio Oiticica, valorizando a presença do espectador, questionando os suportes tradicionais, usando o corpo como território de expressão.
Contudo, de forma muito distinta da performance, Tunga utilizou em suas obras, ou "instaurações", como ele preferia chamá-las, uma encenação que se distanciou de forma bastante radical da espontaneidade que os artistas dos anos 1960 e 1970 buscavam.
Em "Xipófagas Capilares", por exemplo, exibida pela primeira vez em uma galeria comercial, em 1985, Tunga apresentou duas adolescentes loiras semelhantes unidas por uma vasta cabeleira, que percorriam o espaço de mãos dadas.
A ação foi refeita algumas vezes. A estranheza do confronto com as meninas é um tanto semelhante às estratégias surrealistas de provocar o espectador a partir da união de elementos conhecidos, mas que não costumam estar juntos —como o "Telefone-lagosta", criado por Salvador Dalí, em 1936.
No entanto, Tunga visava mais que a provocação e o choque, mesmo que trabalhasse muito bem nessa condição. Em toda a sua obra se percebe, contudo, uma profunda reflexão sobre a condição humana.
No caso de "Xifópagas Capilares", a problemática do duplo, tema recorrente em sua obra, sobressai. Há quatro anos essa "instauração" pode ser revista, desde quando o Inhotim inaugurou o pavilhão dedicado ao artista.
Em um cenário onde os museus de arte do Brasil não dão conta de apresentar de forma decente a produção atual, Tunga se tornou um dos poucos privilegiados a ter no Inhotim um local onde seu trabalho pode ser visto de forma abrangente e completa —com pelo menos dez obras de grande porte.
Esta lá, por exemplo, "À Luz de Dois Mundos", criada para ser exibida no Museu do Louvre, em Paris, em 2005. Nela, Tunga expõe uma caveira em uma imensa rede metálica, referência ao processo civilizador nos trópicos, que dizimou milhões de indígenas em todo continente americano.
Em "À Luz de Dois Mundos", o comentário de Tunga não é literal como pode parecer em uma descrição de poucas palavras. A obra é complexa, cheia de mistérios e metáforas, como em toda sua produção.
Outro trabalho exibido no Inhotim é "Teresa", que em 1999 foi apresentado com cem desempregados em Buenos Aires, na Argentina. Na inauguração de seu pavilhão no Inhotim, em 2012, cem jardineiros tomaram parte da encenação de trançar lençóis, como fazem os detentos para escapar dos presídios, daí o nome "Teresa".
Essa "instauração" representa outro elemento essencial na obra de Tunga: não fica restrito ao discurso sobre a arte. Sua "Teresa" simboliza a necessidade da fuga do circuito, do rompimento com as certezas institucionais, a busca pela liberdade.
A radicalidade da obra de Tunga comprova que é possível ser experimental e, ao mesmo tempo, conseguir inserção sem comprometimento. Assim ele participou das mostras mais importantes, como a Documenta de Kassel, em 1997, a Bienal de Veneza, em 1982, e várias vezes a Bienal de São Paulo.
Assim Tunga será lembrado. Como poucos, ele afinal assumiu a máxima de Mário Pedrosa: "A arte é o exercício experimental da liberdade".