|
junho 9, 2016
Tunga 1952-2016: Antonio José de Barros Carvalho e Mello Mourão por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Tunga 1952-2016: Antonio José de Barros Carvalho e Mello Mourão
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 6 de junho de 2016.
Um dos maiores nomes da arte do país, Tunga morre aos 64, no Rio
Um dos nomes mais celebrados e relevantes das artes visuais do país, Tunga morreu nesta segunda, aos 64. Ele sofria de câncer e estava internado no hospital Samaritano, no Rio, havia três semanas. Seu corpo será enterrado no cemitério São João Batista.
Em quase meio século de carreira, Tunga construiu uma obra plástica incontornável na arte contemporânea, mesclando referências sutis à herança construtiva que dominou as vanguardas nacionais a um universo simbólico único.
Seu mundo de tranças de aço e cobre atravessando pentes, ímãs ultrapotentes, caveiras, esqueletos, sereias, pérolas e sementes foi ao longo dos anos chamado de surrealista, delírios orquestrados como parte de uma mesma sinfonia.
Nascido em Pernambuco e radicado no Rio desde os anos 1970, Antonio José de Barros Carvalho e Mello Mourão era filho de um poeta —Gerardo Mello Mourão. jornalista morto aos 90, em 2007, que foi correspondente da Folha em Pequim no início dos anos 1980.
Desde seus primeiros desenhos, Tunga dizia que suas obras partiam de reflexões a meio caminho entre versos e teorias filosóficas e científicas, “nunca demonstráveis nem refutáveis”, ele frisava.
No campo da escultura, maior parte de sua obra que surgiu sempre aliada à performance, usava materiais como cobre, aço e ímãs em construções que lembram o corpo humano, tecidos, pele, cartilagens e esqueletos, revestindo de dimensão carnal tudo que parece surgir como algo de natureza robusta, industrial.
É nesse sentido, falando em “construção rigorosa do imaginário”, que Tunga juntou duas pontas irreconciliáveis do espectro da arte contemporânea —o minimalismo obcecado pela força bruta da matéria, de Richard Serra a José Resende, e a sensualidade sanguínea de obras sobre o desejo, lembrando a dor dos corpos incomuns de Louise Bourgeois.
Esse erotismo, enquanto forma de manifestação do instinto e do desejo, parece guiar grande parte de suas pesquisas estéticas. Em um filme pornográfico que realizou, cristais e pedras surgem como transmutação de fluidos corporais, saliva, urina e fezes —o artista apontava ali uma espécie de alquimia latente na própria existência, de corpos em transformação.
DÂNDI TROPICAL
Sempre vestindo ternos de cores extravagantes, Tunga era um dândi tropical, lembrando às vezes Flávio de Carvalho, um artista de rigor absoluto em sua obra plástica que sabia ao mesmo tempo desafiar a atmosfera espessa que pesa sobre o mundo da arte.
Numa de suas primeiras séries de desenhos, “Museu da Masturbação Infantil”, dos anos 1970, Tunga já indicava esse caminho dúbio.
É uma dualidade que também transparece em “Ão”, filme que rodou em preto e branco num túnel, nos anos 1980, contrastando luz e escuridão.
Suas tranças de chumbo com laços coloridos criadas na mesma década parecem ter sido o primeiro passo de um arco narrativo que atingiu seu auge nas obras mais recentes, em que peças de argila moldadas à mão se equilibram sobre hastes metálicas.
Tunga morreu num momento de transformação em sua obra. Desde o começo da década de 1980, quando representou o Brasil na Bienal de Veneza, e depois de quatro passagens pela Bienal de São Paulo e mostras no MoMA, em Nova York, na Whitechapel, em Londres, no Jeu de Paume, em Paris, entre outras instituições de peso, ele se firmou como o menos solar e mais soturno dos artistas do país.
O esqueleto que pendurou numa espécie de rede debaixo da pirâmide do Louvre, em Paris, coroava essa descida ao inferno. Seu boneco tétrico se equilibrava tendo como contrapeso outras bolsas cheias de caveiras, uma versão fossilizada de obras que fez ao longo da vida em que frágeis objetos surgem suspensos por redes esgarçadas.
“True Rouge”, de 1997, uma de suas obras mais famosas agora no Instituto Inhotim, é uma dessas peças içadas, com frascos e ampolas de vidro cheias de um líquido vermelho, como se fosse sangue.
Nos últimos anos, depois de cicatrizadas as feridas e tendo sobrado só os ossos, talvez um indício do que ele chamava de um “reencontro com o arcaico”, Tunga foi abrindo mais o traço de seus desenhos e ampliando sua paleta de cores para incluir também tons mais solares, talvez, como dizia, lembrando sua vida à beira do mar.
Sua morte coincide com um momento em que ele afirmava ver “mais mistério na luz do que no escuro, na morte”.