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maio 26, 2016
Adriana Rattes: Por que recusei a Secretaria de Cultura, Época
Adriana Rattes: Por que recusei a Secretaria de Cultura
Declaração de Adriana Rattes originalmente publicada na revista Época em 20 de maio de 2016.
Não dá para menosprezar as preocupações de um setor que está no cerne da construção da identidade nacional. O Ministério da Cultura foi uma conquista, não uma invenção casuística
Nosso Ministério da Cultura foi extinto, voltou a existir e acabou novamente. Como se a cultura não tivesse relevância para o país e como se os agentes de cultura não representassem uma parcela importante de nossa sociedade e não merecessem ser ouvidos. Uma decisão arbitrária, intempestiva, tomada de um jeito tacanho, na contramão do espírito do tempo.
Principalmente por isso, me foi impossível aceitar o convite do ministro da Educação, Mendonça Filho, para assumir a Cultura no governo Temer. O ministro tratou mais essa crise desnecessária com tato e disposição. Desejo todo o sucesso ao recém-nomeado Marcelo Calero como secretário nacional de Cultura. Torço para que dê certo porque torço pelo Brasil. E meu partido é o da Cultura. Mas me impressiona a distância entre Brasília e o Brasil. Como extinguir com uma canetada 30 anos de MinC, sem compreender o simbolismo negativo dessa decisão?
Se o enxugamento dos ministérios era importante, por que não pensar a questão de forma mais ampla e consequente? Por que o MinC pode acabar e o Ministério do Turismo não? Temos alguma política tão relevante de turismo que justifique mais esse ministério que o da Cultura? Aliás, o que atrai o olhar do estrangeiro para o Brasil não é o Carnaval, o samba, a bossa nova, a arquitetura modernista, o Pelourinho, o colorido, os ritmos e os sabores da nossa mestiçagem, a vocação para a festa e a alegria? E tudo isso não é da ordem da cultura?
Por que não fundir também Esporte com Educação? Por que não juntar Integração Nacional com Cidades? Por que não um ministério que reúna os temas da comunicação e cultura e, talvez, também ciência e tecnologia? E se um ministério assim absorvesse as universidades brasileiras, que são os espaços de produção de conhecimento por excelência, a principal e mais potente ponte para o futuro? E se um novo ministério incorporasse também a Funai e toda a contribuição que o modo de viver indígena ofereceu e ainda pode oferecer ao país? E se organismos supraministeriais fossem criados para articular políticas entre essas diversas áreas?
Desculpem-me a audácia de imaginar outros formatos, já posso ouvir o barulhão da polêmica. Nenhuma solução é perfeita, mas a intenção é demonstrar como a discussão poderia ser rica e virtuosa. Ministérios são estruturas menos estáveis do que pode crer o senso comum e mudam de configuração a todo momento pelo mundo, seguindo, além das conveniências dos governos, os humores, necessidades e prioridades do interesse público. O MinC poderia ser objeto de outro arranjo, sim. Ainda é importantíssimo aproximar as políticas para educação e cultura.
Mas de que serve essa precipitação, extinguir sem dialogar? Na instabilidade política que vivemos, pior ainda. O governo Temer tem sido cauteloso com a gestão da economia e por isso formou uma equipe que tem recebido aplausos. O presidente interino ouviu muito, conversou à exaustão com os especialistas na área, para decidir rumos e nomes. Estou aqui reivindicando o mesmo tratamento para a cultura, sim, senhor! Não somos um assunto menor. Não há como menosprezar as preocupações de um setor que está no cerne da construção da identidade nacional.
O movimento atabalhoado só poderia provocar revolta e resistência. Ainda bem que a reação veio rápida e intensa, pois obrigou o Congresso a tomar posição e, seja qual for o resultado, deve fazer com que o governo reveja seus conceitos. Como sou otimista, acredito que os ecos do momento influenciem positivamente os anos vindouros.
Não conseguiria legitimar minha ida para o governo federal agora, porque me sentiria compactuando com um erro de princípio. E de valor. O Ministério da Cultura foi uma conquista, não uma invenção casuística. Veio com a redemocratização do país. Sua existência não se devia ao loteamento clientelista dos interesses partidários.
Apesar de uma certa fragilidade institucional e da debilidade financeira, que persistiram governo após governo (situação que só piorou com Dilma Rousseff), o MinC fortaleceu a compreensão e difusão da identidade, do gênio e do patrimônio histórico, cultural e artístico do país. Criou políticas para a literatura, preservação da memória, cultura popular, cinema e audiovisual, para o financiamento das artes e para democratizar o acesso a tudo isso. Sem falar na vigorosa reinvenção por que passou na gestão de Gilberto Gil.
Sou boa de correr riscos e decidir com minha própria consciência, mesmo contra a maré, porque é assim que a vida vale a pena. Quando aceitei trabalhar no serviço público como secretária de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, enfrentei o desafio de recriar uma secretaria fundada por Darcy Ribeiro, que se tornara decadente, esquecida e aparelhada graças à insensibilidade de sucessivos governos. Nos dez anos anteriores, 11 secretários (repetindo, 11!) haviam ocupado a Pasta. Fiquei lá por quase oito anos. Entre muitas conquistas, criamos bases para políticas fundamentais. Além de estimular a pluralidade das manifestações culturais e formar gestores em cultura, construímos uma rede de bibliotecas parques que se tornaram referência. No período que se seguiu, o magnífico Theatro Municipal, restaurado em toda a sua beleza, virou um dos símbolos da candidatura do Rio de Janeiro às Olimpíadas.
Não sou ligada a nenhum partido e meus tempos de militância e crenças arraigadas ficaram bem lá atrás. Amadureci como mulher e cidadã interessada em investigar minhas dúvidas e me arriscar. Mais do que em definir minha posição no jogo. Mas construí minha identidade profissional e social com a certeza de que no campo da cultura, da arte, do conhecimento e da experiência estética eu encontrava meu desejo de expressão.
Portanto, gostaria de pedir aos senhores – e senhoras – engravatados de Brasília que tratem com reverência a cultura de nosso país. E, se possível, que aproveitem este momento de distopia aguda para mirar na agenda de criatividade, diversidade e inovação que o século XXI nos apresenta. E fazer a conexão entre essa agenda e o meio ambiente, o desenvolvimento, a economia, a qualidade de vida e a cidadania. Só assim ajudarão nossa debilitada democracia a vencer a desigualdade, a ignorância e a intolerância.
Adriana Rattes foi secretária estadual de Cultura do Rio de Janeiro entre 2007 e 2014.