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janeiro 31, 2016
Reflexões sobre história e esquecimento por meio dos monumentos por Camila Molina, Estado de S. Paulo
Reflexões sobre história e esquecimento por meio dos monumentos
Matéria de Camila Molina originalmente publicada no jornal Estado de S. Paulo em 24 de janeiro de 2016.
As exposições 'Memória da Amnésia' e 'Totemonumento' tratam de um tema recorrente na arte contemporânea
Deslocados de um depósito no bairro do Canindé e agora deitados sobre o chão do Arquivo Histórico de São Paulo, os fragmentos do Monumento a Olavo Bilac, de 1922, já não enaltecem o poeta parnasiano nem seus poemas, como Via Láctea. Na verdade, ali ao lado das lagostas de bronze e resina criadas em 1913 por Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto – grandes destaques da Fonte Monumental da Praça Júlio Mesquita – e dos pedaços de outro monumento, Herói da Aviação, que, originalmente, foi instalado em 1915 no Hipódromo da Mooca, aquelas esculturas presentes na mostra Memória da Amnésia representam uma possível “estética do esquecimento”.
“O que você esqueceu de lembrar?”; “O que você lembrou de esquecer?” – são perguntas colocadas pela artista Giselle Beiguelman em pôsteres que recebem os visitantes de sua exposição em cartaz até 25 de fevereiro no edifício projetado por Ramos de Azevedo. “Uma das grandes questões da mostra, e especialmente naquilo que mais me interessa, é a potência da arte contemporânea de tensionar a história no sentido de desmonumentalizar o passado”, sintetiza a pesquisadora.
Em Memória da Amnésia, a artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP traz o tema dos “monumentos nômades” de São Paulo para levantar reflexões sobre a “história invisível” de uma cidade. Por meio de sua pesquisa, sabemos, por exemplo, que, dos 400 monumentos paulistanos catalogados, 62 já mudaram de lugar na metrópole, desde a década de 1920, pelo menos uma vez – e cerca de 40% deles, pelo menos duas vezes, conta Giselle. O mapeamento desse “nomadismo” das estátuas está registrado em fotografias de André Turazzi expostas no Arquivo Histórico – e também pode ser visto no Guia dos Monumentos Nômades –, entretanto, a mostra tem outros componentes que indicam sua vocação mais artística que documental.
Na intervenção de “desmonumentalização” de Giselle Beiguelman, as esculturas estão derrubadas e não evocam a contemplação. A artista ainda destaca que a ação de “deslocamento” – físico e de contexto das obras – é fundamental para se pensar a exposição.
Imagens fotográficas de Ana Ottoni e o vídeo de Cleisson Vidal registram o traslado dos monumentos nômades selecionados para Memória da Amnésia (uma das bases de Heróis da Aviação, para se ter ideia, pesa 1,7 tonelada), mas o que o espectador encontra no espaço expositivo não se trata de ser a ruína de alguma história e, sim, uma cena de certa forma absurda, construída por – e que revelam – diversas fragmentações.
Antimonumentos
Se de um lado as esculturas em bronze, pedra e resina do início do século passado são retomadas para “abordar o esquecimento” e buscar “compreender as políticas culturais e de patrimônio histórico”, as obras contemporâneas dos oito artistas que participam da exposição Totemonumento, em cartaz até 27 de fevereiro na Galeria Leme, também lidam com a questão da história – e, muitas vezes, de seu apagamento.
A curadora da coletiva, Isabella Rjeille, traz como referência para o projeto, como já se vê no título da mostra, a histórica ação Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político, realizada por Cildo Meireles em Belo Horizonte em 1970. Às vésperas do feriado que homenageia o inconfidente mineiro outrora esquartejado e depois tomado como “herói nacional pelos militares” durante a ditadura, a peça consistiu em amarrar galinhas a uma estaca de madeira e queimá-las vivas.
Ao selecionar a fotografia em preto e branco que registra o dia seguinte ao ato, Isabella ressalta “a crítica brutal ao cinismo do poder do Estado sobre as narrativas históricas” incutida no “monumento efêmero” de Cildo e abre as reflexões para o presente. “Cada tempo pede a sua poética”, diz a curadora e, como ela define, “a ideia de monumento é um pouco sublimada na exposição”.
A obra de Clara Ianni, Reparação, é um exemplo contundente dessa chave de reflexão. Os desenhos da artista, muito sutis, remetem, na verdade, a traumatismos ósseos e fazem parte de sua pesquisa sobre desaparecidos políticos. “São pequenas linhas onde ela vai completando fraturas ósseas de fotografias de um livro de antropologia forense”, explica a curadora.
Já Jaime Lauriano faz referência direta ao Monumento às Bandeiras ao criar uma réplica reduzidíssima da obra de Brecheret fundida em latão e cartuchos de munições utilizadas pela Polícia Militar e Forças Armadas Brasileiras (e a peça fica sobre um tijolo).
Nas criações dos outros artistas da exposição, Frederico Filippi discute sobre o Descobrimento das Américas e o impacto da chegada dos colonizadores enquanto Regina Parra trata da imigração; Raphael Escobar lembra do Massacre do Carandiru dando voz a um de seus sobreviventes; e Erica Ferrari constrói “o avesso de um monumento” com destroços da cidade. Por fim, o peruano José Carlos Martinat sintetiza em Contextualizable a imagem das histórias “moldáveis” por meio da exibição de um grande totem de argila que fica à disposição das mãos dos espectadores.