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julho 5, 2015
Leilão abre precedente para cobrança sobre valorização de obras de arte por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Leilão abre precedente para cobrança sobre valorização de obras de arte
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no caderno Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 30 de junho de 2015.
Mais do que as obras à venda, uma presença ilustre chamou a atenção na primeira fila do último leilão da Bolsa de Arte em São Paulo. Antes dos lances, o ministro Luís Roberto Barroso do STF, o Supremo Tribunal Federal, fez um discurso sobre a coleção do amigo Nelson Diz que em seguida encararia o martelo.
Na condição de testamenteiro do advogado morto há um ano, Barroso quis ver todos os lances na venda do dia 28 de maio. A noite terminou com um saldo de R$ 13 milhões pagos por 119 peças –só quatro delas não encontraram um comprador, enquanto outras quatro saíram por mais de R$ 1 milhão cada uma.
"Foi um sucesso o leilão", resume Viviane Perez, inventariante de Diz, que deixou todo o seu patrimônio para três empregadas e uma namorada. Mas antes de repassar a elas a fortuna arrecadada com a venda das obras, sua advogada terá de reservar uma parte aos artistas e herdeiros daqueles já mortos que decidirem cobrar o direito de sequência.
Essa medida, que está na Lei do Direito Autoral, prevê que quando uma obra de arte é revendida o artista ou seus herdeiros têm direito a receber 5% do lucro do vendedor. Pela dificuldade em calcular esse valor, já que muitas vezes não se sabe quanto o colecionador pagou pela obra que está leiloando, ninguém costuma ver a cor desse dinheiro.
Mas agora a situação pode ser diferente. Isso porque o preço pago por Nelson Diz por cada uma das obras consta de suas declarações à Receita Federal e do testamento, um documento público. O fato de o caso ter o envolvimento de um ministro do STF também dá maior visibilidade ao assunto.
Ou seja, essa é uma rara circunstância em que a lei pode ser aplicada, já que é possível calcular quanto cada artista ou herdeiro tem direito a receber. Uma vez determinadas as quantias, os pagamentos serão feitos àqueles que se manifestarem. "Nosso interesse é dar cumprimento à lei", diz Perez. "Da nossa parte não haverá nenhuma oposição."
Nem poderia haver. "Se o ministro tem o Imposto de Renda do falecido, sabe quanto custaram as obras. É matemática simples", diz o advogado Pedro Mastrobuono, especialista em direito autoral.
"Na condição de ministro, ele não pode alegar que desconhece a lei. Ele fica numa situação desconfortável", afirma Mastrobuono, um dos maiores colecionadores de Alfredo Volpi e responsável pelo espólio do artista ítalo-brasileiro morto em 1988.
Se aplicada a matemática, por exemplo, uma tela de Volpi comprada por Diz há seis anos por R$ 25 mil e arrematada no leilão por R$ 650 mil sofreu uma valorização de R$ 625 mil –ou seja, os herdeiros de Volpi poderiam receber então 5% de R$ 625 mil, ou pouco menos de R$ 32 mil.
Mas a cobrança não é tão simples. "Se eu pagar hoje para um herdeiro, amanhã aparece outro, e às vezes estão todos brigando", diz Jones Bergamin, dono da Bolsa de Arte. "Essa lei é tão mal escrita que não tem como funcionar."
Nesse sentido, famílias como a de Candido Portinari vêm tentando evitar longos processos judiciais e chegaram a um acordo com leiloeiros, aceitando 3% do valor total da venda de uma obra. "É um acordo informal que nos foi proposto por alguns marchands", diz Maria Edina Portinari, nora do pintor. "Eles reservam a quantia e pagam."
SEM ACORDO
Nos casos em que não se chega a um acordo, no entanto, as brigas se arrastam na Justiça. Os Portinari tentam até hoje receber o direito de sequência sobre um desenho arrematado por R$ 9.000 num leilão no Rio há quatro anos.
Soraia Cals, a leiloeira em questão, diz que é impossível determinar qual foi a valorização sofrida pela obra e por isso não cabe fazer esse pagamento. Em todo caso, deixou de vender qualquer peça de Portinari por precaução.
Em resposta ao caso Portinari, que agora chega ao Superior Tribunal de Justiça, tramita no Congresso uma lei que muda o texto do direito de sequência, que passaria de 5% sobre o lucro para 5% do valor total da venda –ou seja, seria igual à lei europeia.
Embora possa eliminar dúvidas e tornar mais fácil a aplicação da lei, a mudança não garante que ela seja usada por quem poderia, já que leiloeiros, como Cals, podem se recusar a vender obras de artistas com herdeiros que costumam cobrar o direito de sequência. Ou seja, criaria uma lista negra no mercado.
"Todos os artistas podem entrar com esses pedidos, mas acontece que não vou botar mais no leilão", diz Bergamin. "Os proprietários não vão querer mais vender, e os artistas vivos têm medo que caiam os preços e eles sejam aposentados do mercado."
De fato, os artistas vivos ficam mais melindrados. A maioria nem sabe que existe o direito de sequência, uma herança do direito francês que criou a regra no século 19 para evitar que autores não fossem remunerados pela venda de seus livros fora do país. E aqueles que sabem preferem não fazer a cobrança para não se indispor com o mercado.
"Se isso for mais um instrumento que possa engessar o duro trabalho do mercado de arte, acho que deve ser mais discutido", diz Tunga, artista que teve obras vendidas por quase R$ 400 mil no leilão da Bolsa de Arte. "Nesse ponto, eu sou pragmático."
ECAD DAS ARTES
Enquanto não impera o pragmatismo –e a lei não muda–, o advogado Leonardo Cançado vem tentando criar um sistema para arrecadar o direito de sequência em nome dos artistas, uma espécie de Ecad das artes. Ele diz já ter 70 nomes que apoiam seu projeto, embora nenhum venha a público porque "tem medo de sofrer represálias".
"Esse mercado é muito delicado, e as pessoas que defendem direitos contrários aos dos artistas são muito poderosas", diz Cançado. "Por isso esse caso envolvendo o ministro Barroso é tão importante. Se fosse um colecionador comum, ele poderia dizer que não pagaria. Só que um ministro não pode dar um exemplo desses para todo o país."
Procurado, Barroso não quis comentar o tema para não antecipar seu voto, já que a questão diz respeito a casos que serão julgados pelo Supremo.