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maio 13, 2015
Quando o problema do mercado de arte é um problema? por Paulo Miyada, Select
Quando o problema do mercado de arte é um problema?
Texto de Paulo Miyada originalmente publicado na revista Select em 7 de maio de 2015.
Paulo Miyada, curador do Instituto Tomie Ohtake em São Paulo, reflete a respeito de debate sobre arte contemporânea que acontece nesse momento entre críticos e o público de redes sociais
Por ocasião da feira ArtRio de 2012, a crítica Luisa Duarte publicou em sua coluna no Globo um lembrete aos desavisados de que feiras de arte estavam longe de ser contextos ideais para conhecer de forma aprofundada a arte contemporânea e suas sutilezas, sobretudo para os marinheiros de primeira viagem: “uma feira de arte não é, definitivamente, o lugar para uma experiência primeira com a arte”, ela dizia. Neste ano, no dia da abertura da feira SP-Arte, o assunto voltou à baila quando Silas Martí, escrevendo para a Folha de São Paulo, lembrou que o milionário financiamento público ao mega-evento poderia ser colocado em questão devido aos seus fins prioritariamente comerciais.
Nesses casos, a mídia colaborou para relativizar o papel do mercado como ambiência para estar junto da arte. Noutros, a crítica ao mercado possui menos foco e clareza. Ainda no mesmo mês de abril, houve a abertura do Prêmio Marcantônio Vilaça e o anúncio de seus premiados, sendo recorrente em desabafos que circulavam na noite de premiação certa ojeriza frente ao custo da festa regada a whisky dez anos e ovos de codorna com molho rosé, apresentada pelo mestre de cerimônias Dan Stulbach (que não é mais global, mas merece ser chamado de famoso, bonito e “com cara de rico”, como disse a artista Berna Reale ao receber a premiação). Já hoje, 4 de maio, a colega curadora Daniela Labra publica no jornal O Globo algo que já havia manifestado na última semana nas redes sociais: sua exasperação frente ao fato da mostra “Imagine Brazil”, recém encerrada no Instituto Tomie Ohtake, divulgar em suas fichas técnicas a cortesia das galerias que representam os artistas participantes pelo empréstimo de obras. Sobretudo na sua versão das redes sociais, o argumento provocou os mais entusiasmados apoios, que rapidamente se deslocaram de qualquer problema pontual para atacar as instituições e o sistema da arte como um todo.
O que é comum nesses e em tantos outros comentários é o desconforto acerca de como o poder do capital privado, das galerias e do mercado de arte emerge como variável que conforma os espaços de exibição das obras de arte contemporâneas, divulgando suas marcas, definindo ambiências ou ditando formatos para a fruição da arte. É compreensível que seja assim, pois, embora o mercado seja parte idiossincrática da arte como instituição moderna e burguesa, há um desarranjo igualmente idiossincrático entre os valores da produção artística e sua mobilidade como mercadoria – coisas a princípio muito diversas. A princípio diversas – ou, poderíamos dizer, no princípio diversas.
Para mim, vale a intuição do escritor Georges Bataille de que a produção artística que mais importa é aquela que herda pelo menos um pouco das práticas de dádiva (potlatch) tipicamente pré-mercantis (não apenas em povos do passado, mas em povos do presente cuja cultura passa ao largo da adoção de moedas).
Falo aqui dos pensamentos, gestos e feitos artísticos como presentes não solicitados que podem estar muito além ou muito aquém do que a sociedade espera dos artistas. As variadas versões do potlatch estudadas e definidas no que têm em comum pelos antropólogos Bronisław Malinowski e Marcel Mauss fascinaram Bataille pelo que demonstraram de desperdício e exagero. Nelas, quando existe uma situação ritual adequada, é necessário que uma célula social (uma família, um clã, uma tribo) presenteie outra com o seu melhor presente (sua dádiva, seu festival, seu sacrifício); por melhor que seja o presente – e aqui não cabe economia ou avareza, é necessário dar sempre o que se acredita ser o melhor presente possível –, é praxe desculpar-se pela humildade e precariedade do gesto; então, a parte presenteada diz que a oferta é demasiada, que não carece daquilo; o presenteador insiste, afinal, seria uma ofensa ouvir uma recusa; o presenteado por fim aceita e volta para casa com uma riqueza e, também, com uma dívida: sem que aja negociações, barganhas ou contratos, todos sabem que ele está obrigado (social, econômica, espiritual e magicamente) a retribuir aquele presente, de preferência com algo que supere o valor do que recebeu.
Existe competição, humilhação e dívida, logo não é um processo de bondade intrínseca. Mas existe também autonomia entre as partes e pertencimento entre o que se faz, o que se troca e como se vive. Mais ainda, uma vez que a riqueza só produz sentido nas sociedades do Potlatch quando gasta, oferecida aos outros, existe um estímulo constante ao desperdício ritualizado.
O artista então seria herdeiro dessas práticas na medida em que é um sujeito social que decide por si mesmo o que é o melhor que pode se esforçar para produzir para presentear um outro alguém. Precisa decidir, avaliando suas capacidades, limites, recursos, desejos e obsessões, o que é que pode oferecer ao mundo que seja um ótimo presente: que o mundo precisa ou, ao contrário, que não produziria se deixado por si mesmo. Em muitos sentidos, trata-se de uma atitude exasperante, porque demanda enorme dedicação e compromisso, sem nenhuma garantia de que seu presente será aceito e retribuído hoje ou em qualquer outro tempo.
O pior, constatava Bataille, é que em sociedades como a nossa – que não apenas são mercantis como também baseadas no princípio do acúmulo, da economia e da herança – todo potencial dispêndio impulsivo corre risco de ser tratado como o pior dos pecados. Não foi a toa que os rituais dessa ordem promovidos pelos índios da América do Norte foram proibidos e criminalizados, assim como é significativo que nos apeguemos cada vez mais a listas de presente pré-fixadas em ocasiões como casamentos.
Se seguirmos por essa linha de raciocínio, não é difícil perceber a incongruência originária entre o gesto artístico e a economia capitalista. Não obstante, a instituição da arte como a reconhecemos hoje (amparada por coleções, museus, mercado e concentrada na figura dos artistas como autores) é ela mesma uma parte integral dessa incongruência de finalidades. Pois naquelas mesmas sociedades que têm o potlatch como princípio de troca competitiva, também não há lugar para o artista como especialista profissional ou para a arte como campo claramente diferenciado dos parâmetros da magia, da funcionalidade, da sexualidade e assim por diante.
O entendimento do artista como um profissional entre tantos é uma construção da sociedade mercantil e, mesmo assim, os artistas vivem em constante desconforto por serem parte dela. Grosso modo, eu diria que isso decorre da coexistência de dois sistemas de valoração da arte que são estruturalmente diferentes e, não obstante, intercomunicáveis.
Por um lado, há o valor da arte como parcela praticada da cultura ou, nos termos deste texto, como presente acolhido pela sociedade que conta com manifestações e documentos da arte como elementos que carregam relações conceituais, linguísticas, emocionais e perceptivas válidas no âmbito da história da arte e (por metáfora ou metonímia) na definição do mundo do presente, do passado e do futuro. Para a definição desse valor é necessário que haja potência no trabalho artístico e interesse na percepção do público em certa época – vale a pena lembrar os escritos de Marcel Duchamp e citar a máxima vez em quando bradada pelo artista carioca Milton Machado: “a arte não existe, senão como negociação com sua exterioridade”.
Esse valor da arte como parcela praticada da cultura depende: 1. da capacidade de cada artista em construir os problemas e os recursos de sua obra específica, elaborando respostas precisas para questões elaboradas por um pensamento plástico (na acepção da plasticidade da forma e também da elasticidade do raciocínio); 2. da elaboração pelo público (dos críticos especializados aos estudantes de ensino fundamental) de olhares capaz de reconhecer e conviver com aquilo que cada trabalho traz, reposicionando-o na periferia ou no centro dos entendimentos do que seja a arte e do que seja o mundo. E posto que ambas essas atividades são dinâmicas e estão sempre se fortalecendo em alguma direção e deixando-se atrofiar em outras, é inevitável pensar que se trata de um regime de valoração da arte que funciona sendo sempre incompleto e provisório, além de passível de dissensos de toda ordem.
Por outro lado, há o valor de troca mercantil da obra de arte, o qual até se referencia nos valores identificados no modelo descrito acima, mas na verdade possui dinâmicas e parâmetros próprios e, no limite, desassociados do quanto tal ou qual obra possui potência e reconhecimento como parte da cultura. O capitalismo avançado já nos ensinou o que é especulação financeira, posto que vemos os bancos e imobiliárias praticando-a de forma legalizada todo o tempo, e nos acostumamos com a noção de que há quem compre e venda euforicamente títulos de “barris de petróleo futuros” e outras virtualidades sem concretude material no presente. Nesse contexto, as obras de arte podem ser reconhecidas como bens especulativos ideais. É que seu preço não possui lastro nos seus custos de produção, na quantidade de matéria-prima empregada ou nas horas de trabalho de seu produtor: quem reconhece esses dados concretos como variáveis na definição do preço que deve ter uma tela de Picasso? E, ainda por cima, a legislação que lhe rege não considera – ao contrário do que vale em outros campos do capitalismo financeiro – que a utilização de informação privilegiada ou mesmo o lobby sejam em si crimes.
O discurso emitido para inglês ver é de que o que dá lastro para o preço de uma obra de arte é o seu reconhecimento segundo os critérios apontados acima como sinais de que a sociedade valoriza certa produção artística. Mas essa é uma promessa muito vaga e improvável, a começar pelas diferenças estruturais entre esses valores: 1. As dinâmicas aludidas no ir e vir do reconhecimento da arte são muitas vezes lentas, difusas e de difícil decodificação, sendo impossíveis de traduzir para a objetividade dos números e preços; 2. O que fortalece uma produção artística muitas vezes extravasa em muito a escala dos objetos, tornando a relação entre o reconhecimento da arte e de seus produtos algo frágil e consolidado apenas pelo nome do artista como marca; 3. Enquanto na valoração da arte como cultura predominam movimentos de dissenso, na arte como produto os valores de mercado se pretendem tanto quanto possível consensuais e absolutos.
No nível mais empírico, essa disjunção entre valores se faz sempre gritante, na medida em que, desde o advento do capitalismo, todas as épocas até agora deixaram para trás as provas de incongruências imensas entre o que o mercado legitimava como bom e o que a sociedade estava em vias de praticar e reconhecer como experiência estética e conceitual. No final das contas, por fazer parte de fluxos especulativos, a única coisa que se pode tomar com toda certeza como verdade sobre o preço de uma obra é que ele é tão alto quanto alguém estiver disposto a pagar por ela acreditando que em algum futuro mais ou menos próximo ela terá mantido ou multiplicado seu valor. Por isso, caberia até fazer analogia com o que dizia Jean-Luc Godard sobre a indústria hollywoodiana de cinema: o mercado da arte não serve para ganhar dinheiro, mas para gastar dinheiro.
Agora, esse paradoxo é tolerável para a existência da arte como cultura? Bom, precisa ser, pois a arte se conformou dentro desse devir histórico-social e é sabido que não existe um “lado de fora” ideal no qual seja possível resguardar os artistas, suas produções e toda a fruição de seu público. Vivemos em uma sociedade capitalista cujas metas mais constantes são a acumulação de capital e a manutenção do poder e tudo que fazemos decorre dessa condição e/ou precisa lidar constantemente com ela. É possível ser crítico e político nesse sistema, mas se trata de uma prova de força em negociação com sua exterioridade [1].
Se (enquanto) o modelo econômico vigente for este, será exigido que os agentes desejosos de que a arte seja praticada como modelo metafórico e metonímico de existência no mundo compreendam que o sistema de precificação e comercialização da arte é uma mediação para tradução e traição dos valores da arte em valor mercantil. Embora a arte ainda possa dizer respeito ao potlatch, ao dispêndio irrefreável de energias e desejos, sua comercialização opera na lógica do acúmulo e multiplicação das divisas. Embora o senso comum seja de que existe uma relação de complementaridade entre mercado, instituição, academia e assim por diante, seria mais preciso dizer que existe uma simultaneidade desconexa e reativa em que cada parte procura justificar suas escolhas enquanto se surpreende, se irrita, se excita e se atualiza diante das escolhas das outras partes.
Seria (será) encantador que a ordem das coisas se rompa e se reconfigure a ponto do trabalho especializado em arte perder seu sentido como profissão e mercado, assim como não tem razão nas sociedades do potlatch. Enquanto o mundo não for este, teremos de continuar lidando com a sobreposição e relativa promiscuidade entre os sistemas de valoração do gesto artístico e seus resultados [2]. Nesse caso, pouco colaboram os pontos de vista que tratam qualquer efeito visível do mercado de arte como uma mácula à essência do que fazem os artistas. Quando torcemos o nariz ao relativo enriquecimento de algum artista, à divulgação da existência e eficiência das galerias como agentes de promoção comercial da arte, ao trânsito e negociação entre mercado, artistas e críticos, enfim, quando tratamos o problema como uma cruzada da pureza da autonomia da arte, podemos às vezes parecer estar demarcando um ponto de vista crítico quando, na verdade, estamos reforçando a importância dos critérios financeiros como centro de nossas atenções.
Como naquilo que chamamos de “culpa cristã”, às vezes fazemos o papel de juízes da moral quando na verdade estamos tentando recalcar nossa própria impossibilidade de retornar a algum Éden puro e pacífico – ou, no caso de alguns, a impossibilidade de ser protagonista do mercado aparentemente desprezado. E ao fazermos isso acabamos lançando uma nuvem de dedos acusatórios em riste, esbravejando sobre os deslizes dos outros para que ninguém se dê conta de nossos próprios pecados.
Pessoalmente, defendo algumas atitudes. Antes de tudo, que minhas escolhas como curador e pesquisador procurem sempre olhar com paciência para os valores extra-financeiros da produção dos artistas e falar sobre eles, discuti-los, privilegiá-los na apresentação, escrita e exibição de obras de arte. Depois, que as colaborações com instituições, galerias, colecionadores, patrocinadores e assim por diante, quando existam, sejam declaradas ao público da forma mais transparente possível. O primeiro ponto é um problema ético e intelectual sobre o qual não é possível dar provas, mas que provavelmente fica mais ou menos evidente na trajetória profissional de cada agente do campo da arte com o passar dos anos. O segundo reflete o fato de que inevitavelmente as valorações financeiras da arte terão consequências para o modo como as oportunidades de produção e veiculação dos trabalhos serão distribuídas – por mais que todos estejam atentos a sua conduta ética não poderemos evitar que a maior e menor circulação de dinheiro tenha consequências no mundo em que vivemos –, logo, o melhor é que nos momentos em que tal influência se torne palpável ela também seja nomeada e identificada, para que o público e o meio de arte possa levá-la em consideração ao refletir sobre o que vê [3].
Por isso, se é efetivamente necessário refletir sobre quais oportunidades o grande público tem de conhecer a arte em contexto menos frenético do que uma feira de negócios; se é importante verificar se o mercado não está abusando de recursos públicos que poderiam colaborar para iniciativas que ocupam a margem do sistema de monetização da arte; se é legítimo avaliar as prioridades de um patrocinador ao gastar mais ou menos na decoração da festa e na remuneração dos profissionais envolvidos; e se pode-se questionar a publicidade implícita que mostras institucionais fazem de espaços comerciais; se toda crítica é necessária para evitar que se soterre a visibilidade do que mais importa para que a arte funcione mesmo como arte na sociedade – ainda assim, as melhores soluções são as que deixam seus pontos de contato com o mercado visíveis para quem quiser ver.
Até hoje, o fato da arte das sociedades capitalistas avançadas ser mercadoria de potencial especulativo não impediu que a arte existisse e tivesse potência como negociação com sua exterioridade. Muitos gatos foram vendidos por lebre, claro, mas esse foi sobretudo um prejuízo no âmbito financeiro da arte. No que diz respeito ao papel social e político da arte, no longo arco da história que propiciará ao futuro julgar o que de mais premente se fez nos dias de hoje, ainda haverá espaço para reordenar e requalificar tudo – desde que exista no presente obras e pensamentos que cativem os historiadores do futuro.
NOTAS
[1] Em seus casos mais vigorosos e imaginativos, é possível inclusive que artistas críticos ensaiem outros mundos possíveis, como utopia prática, situação ou guerrilha. Os brilhantes momentos dessa história e seus ocasos são assunto para outro momento.
[2] É bom lembrar que esse paradoxo se aprofunda conforme o capitalismo avançado aperfeiçoa seus dispositivos de especulação e se torna mais e mais abrangente. O efeito é uma profunda sensação de estreitamento de horizonte.
[3] Uma terceira possibilidade, ainda, é o aparentemente simples gesto de “preferir não fazer”, quando as condições que tornam possível um trabalho atingem diretamente a ética dos envolvidos. A eloquente fragilidade desta opção faz com que ela também mereça outro texto, tão detalhado quanto este.