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abril 1, 2015
Para sempre por Fred Coelho, O Globo
Para sempre
Coluna de Fred Coelho originalmente publicada no jornal O Globo em 1 de abril de 2015.
Como pode uma administração que se diz sensível ao patrimônio artístico e histórico da cidade ter cogitado passar por cima de uma escultura pública
Na última semana, um evento com rápidas idas e vindas nos apontou o sintomático lugar que as artes visuais ocupam no imaginário oficial do poder público carioca. Estou falando sobre a quase destruição da escultura de Waltercio Caldas (“Escultura para o Rio”), localizada no Centro da cidade. A ideia, até o momento em que escrevo, foi revogada. O fato, porém, é que ela veio de técnicos ligados à prefeitura do Rio de Janeiro. O motivo era o até então inegociável traçado do VLT. Como pode uma administração que se diz sensível ao patrimônio artístico e histórico da cidade ter cogitado passar por cima de uma escultura pública, também gestada e instalada por uma prefeitura (projeto “Esculturas urbanas”) na década de 1990?
Provavelmente muitos pensam que, em uma cidade conflagrada e militarizada como o Rio de Janeiro (enquanto existirem tanques na Maré, vivemos sob intervenção militar), uma obra de arte não é assunto sério frente aos milhares de problemas do nosso cotidiano. Mais que isso, muitos podem até dizer que o progresso, essa máquina faminta, não pode ser impedido frente a duas torres de pedras portuguesas.
Bem, talvez seja aí que reside o busílis da questão. Sabemos que a arte contemporânea, em geral, vive em baixíssima conta popular. Sua suposta aura elitista (alimentada por excessos que a ligam a um mercado milionário), sua pouca comunicação com o senso comum (em textos e abordagens curatoriais às vezes mais complexas do que as próprias obras) e seu necessário deslocamento crítico frente ao olhar do público (afinal, não se trata de trabalhos que querem comunicar o óbvio) já são elementos que, de certa forma, a colocam em um espaço muito frágil em disputas como essa. Atitudes como a da prefeitura só reforçam esse estereótipo ao mostrar equivocadamente à população o quão descartável pode ser uma obra desse porte. Vale lembrar que, nos últimos dias, um vagão do futuro VLT ficou exposto na Cinelândia para visitação. Quantos dos que foram ver esse “objeto estético” visitariam a obra de Waltercio? Pergunta retórica, claro, pois isso não importa. Se o VLT tem sua utilidade na promessa de um transporte público de qualidade, a “Escultura para o Rio” está lá justamente para marcar um contraponto crítico na narrativa produtiva da cidade.
Por sugerirem que uma escultura como a de Waltercio (ou de Ivens Machado, Amilcar de Castro, Angelo Venosa, Burle Marx, Aluísio Carvão ou Franz Weissmann, alguns dos principais artistas plásticos que ocupam o espaço público) não tem valor permanente para o bem comum da cidade, e por cogitarem a primazia de um “bonde futurista” nas nossas necessidades coletivas, a prefeitura emite um sinal distorcido para a população. Reduz o entendimento sobre arte pública a estátuas homenageando grandes nomes da cultura ou painéis de artistas pop ocupando fachadas de empresas. Creio que o caminho deveria ser o contrário. Ou, pelo menos, complementar.
Se os discursos sobre a arte apontam um espaço fechado (e caro) de fruição, isso se deve muito mais aos formatos propostos em sua apresentação do que às demandas populares pela sua presença. Basta constatarmos que o Centro e a Zona Sul estão cheios de galerias, museus e obras públicas, enquanto não há praticamente nenhuma presença institucional ou privada em bairros da Zona Norte, Zona Oeste e adjacências. Aqui, o campo de possibilidades é vasto para quem pensa a arte como uma forma de multiplicação de olhares, e não de concentração de riquezas.
Existem atualmente projetos que buscam aproximar essas experiências e superar as supostas distâncias naturalizadas entre a população e os espaços convencionais da arte. São iniciativas que vão no caminho contrário do poder público e da lógica das megaexposições cujas filas são sinal de sucesso. Galerias no Borel (fruto das ações do coletivo Boreart) e no Chapéu Mangueira, galpões como o Bela Maré, na Nova Holanda, ocupações do coletivo Norte Comum e intervenções como os azulejos do coletivo Muda são apenas algumas das formas exemplares que devemos valorizar para entender o lugar orgânico das artes visuais nos múltiplos cotidianos da cidade.
Para fechar um texto cujo tema daria dezenas de colunas, voltemos ao momento em que Waltercio Caldas foi convidado para realizar sua obra. Imagino que o movimento inicial tenha sido elaborar algo que, por se enraizar no solo das ruas — e no caso da obra dele, literalmente fazê-la nascer da calçada — fosse permanente. Suas colunas brancusianas de pedras portuguesas aspiram o céu e nos fazem olhar o azul dos dias em uma avenida entupida de dióxido de carbono e esmagada pela memória fantasmagórica do extinto Morro do Castelo. Elas estão lá justamente para que possamos fruir sua invisibilidade monumental e para zelar pela beleza fugaz de nossos dias. Para sempre.