|
fevereiro 25, 2015
Mostra em SP joga luz sobre visão homoerótica de Pierre Verger por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Mostra em SP joga luz sobre visão homoerótica de Pierre Verger
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo, Caderno Ilustrada, em em 23 de fevereiro de 2015.
Pierre Verger - O Mensageiro, Galeria Marcelo Guarnieri, São Paulo, SP - 02/03/2015 a 28/03/2015
Mais do que um fotógrafo etnográfico, que documentou os laços culturais entre a África e o Brasil pelo prisma da vida em Salvador, Pierre Verger construiu em sete décadas de trabalho uma visão única do corpo masculino.
Seu olhar sobre os homens, em especial os negros, tinha outra temperatura, como se sua lente fosse menos uma ferramenta voyeurística e mais um instrumento de afeto, ou quase de confissão do desejo.
Verger, francês que se radicou em Salvador, morto aos 93, em 1996, foi um dândi parisiense que primeiro mergulhou na cultura africana no Bal Nègre, cabaré frequentado por imigrantes da África e do Caribe que foi um epicentro das vanguardas estéticas na cidade-luz nos anos 1920.
"Nos esbaldávamos na animalidade dos negros da rua Blomet, que pareciam histéricos em transe", escreveu a feminista Simone de Beauvoir, sobre o auge da boate. "Meu coração batia mais rápido entre aqueles corpos em festa."
Uma mostra agora na galeria Marcelo Guarnieri, em São Paulo, resgata esse olhar homoerótico de Verger como um lado esquecido da obra do artista, revisitando imagens que estiveram no hoje clássico livro "O Mensageiro", lançado primeiro em Paris, em 1993.
Nele, estava uma seleção do que seus organizadores, o casal Jean Loup Pivin e Pascal Martin Saint Leon, chamaram de "olhar amoroso" de Verger sobre o mundo.
"Ele não falava da homossexualidade em público, mas amava fotografar os homens com quem tinha pequenas aventuras", conta Saint Leon, que foi amigo do artista.
"Verger se lembrava do nome de todos os homens que fotografou. Seu olhar não era o de um voyeur. Era íntimo, cheio de sensualidade. Cada foto era um momento de amor ou de felicidade."
Na opinião de Saint Leon, que ao lado do namorado fundou nos anos 1990 a "Revue Noire", uma revista e galeria de arte africana em Paris, a obra de Verger tomou outro rumo depois de sua mudança para Salvador, em 1946, que marcou o momento em que o artista passou a se identificar mais como um etnógrafo.
Verger, então quase esquecido em Paris, havia sido um dos maiores fotojornalistas do início do século 20, famoso por suas visões únicas.
Na tentativa de resgatar o olhar mais estetizante do fotógrafo, Pivin e Saint Leon montaram uma mostra em Paris com cerca de 200 imagens que pinçaram dos negativos do artista, uma seleção que julgavam traduzir seu desejo pelo corpo dos homens.
"Foi uma exposição autobiográfica. Ele foi redescoberto como fotógrafo ali", diz Alex Baradel, responsável pelo acervo da Fundação Pierre Verger, em Salvador, e organizador da mostra paulistana.
"É uma visão sensual do homem. Seu interesse não era antropológico, era o tratamento do corpo masculino."
BRUTOS ENDEUSADOS
Eder Chiodetto, crítico de fotografia, já enxergava esse viés na obra de Verger, mas ressalta que é uma leitura pouco usual de seu trabalho. "Isso é evidente, mas faltam pesquisadores para investigar isso a fundo", afirma. "Ele tem um olhar para o corpo do negro que é um olhar de desejo."
Sem saber da sexualidade de Verger e sua exaltação da beleza masculina, o artista Ivan Grilo destacou esse aspecto da obra quando exibiu uma cópia do livro "O Mensageiro" com o nome alterado para "Negros Gostosos" numa mostra há um ano no Centro Cultural São Paulo.
"Ele sabia valorizar bem o corpo. Eram homens comuns, brutos, mas retratados bem endeusados", analisa Grilo. "E, pensando bem, só poderia ter tesão envolvido para o seu trabalho ficar tão bom."
Jonathas de Andrade, outro artista contemporâneo, também vem refletindo sobre a linha tênue entre o olhar etnográfico e o erotismo. Numa mostra agora no Museu de Arte do Rio, ele criou cartazes com fotos de homens comuns posando de garotos-propaganda do Museu do Homem do Nordeste, no Recife.
"Minha impressão é que Verger se lançou no transe que é atravessar esse povo e se apaixonar por ele", diz Andrade. "Existe uma espontaneidade no dia a dia, um magnetismo. E isso pode ser lido como erotismo."