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outubro 6, 2014
Falta de parceria entre colecionadores e instituições faz com que obras se distanciem do público por Luisa Duarte, O Globo
Falta de parceria entre colecionadores e instituições faz com que obras se distanciem do público
Artigo de Luisa Duarte originalmente publicada no jornal O Globo em 15 de setembro de 2014.
Museu de Arte do Rio (MAR) inovou, no entanto, ao pedir doações para obter telas na ArtRio
RIO — A obra de Rosangela Rennó, “Menos-Valia (Leilão)”, de 2010, exibia uma coleção de 73 objetos fotográficos adquiridos em feiras de segunda mão. A artista levava para um circuito legitimado — a 29ª Bienal de SP — aquilo que antes era destinado à invisibilidade e, ao realizar um leilão das peças durante a mostra, colocava à luz o fetiche da mercadoria vinculado à arte. “Se a arte pode fazer do lixo poesia, está sujeita a fazer da invenção uma mera cifra” — estas palavras de Moacir dos Anjos sobre “Menos-Valia (Leilão)” nos recorda uma obviedade tantas vezes esquecida: antes de ser uma mercadoria, uma obra de arte é uma invenção endereçada ao mundo.
Há três anos escrevi neste mesmo espaço um artigo sobre a repercussão da primeira edição da feira ArtRio. O texto questionava a euforia causada pelo evento e chamava atenção para as disfunções de um circuito de arte local desequilibrado, no qual o mercado se organizou muito bem enquanto outras esferas, como as instituições públicas, a crítica, as escolas, tinham um peso cada vez menor, deixando que o comércio se tornasse o parâmetro maior de legitimação do trabalho de um artista.
FRAGILIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Passado este tempo vale colocar em pauta um outro debate. Uma reportagem publicada na capa do Segundo Caderno da última quarta-feira mostrava números reveladores: atualmente 76% da venda de obras de arte no Brasil têm como destino colecionadores, e somente 4% instituições. Esses dados levam a algumas considerações. Primeiramente reiteram a fragilidade de nossas políticas públicas de aquisição de acervo, bem como são sintomas de um grau ainda diminuto de parceria entre colecionadores e instituições. Em boa parte do mundo pessoas físicas são a origem de parcela considerável do orçamento de museus para novas aquisições. Em segundo lugar, a estatística sinaliza a existência de uma quantidade esmagadora de trabalhos que fica restrita ao circuito ateliê-galeria-casa do colecionador. Se vivemos em uma época na qual a ética do consumo está demasiadamente aplicada à arte, é importante lembrarmos que a arte é, antes de tudo, um bem comum, no sentido de que sua realização ultrapassa em muito os fins comerciais. Torna-se pertinente começarmos a desenhar dispositivos que levem essas obras para mais perto da esfera pública fazendo com que colecionadores — agentes que possibilitam que os artistas continuem a criar vivendo somente de sua obra e que ativam todo um circuito — possam atuar de maneira mais forte no que toca o papel da arte na formação de nosso país.
A arte contemporânea possui uma natureza capaz de destiná-la a um apartamento do mundo — diferentemente de livros, músicas, filmes; tal situação revela-se uma contradição cruel, pois ali estão sendo muitas vezes cultivadas reflexões ricas sobre o tempo em que vivemos.
Deixemos de lado os nomes considerados históricos e tomemos um volume considerável de artistas jovens ou em meio de carreira que certamente formam a maior parcela dentre os 76% adquiridos por colecionadores, até porque nesse nicho encontra-se um preço menos exorbitante. Esse manancial, o contemporâneo de hoje que será o histórico de amanhã, deveria ser o foco de um projeto que torne viável a circulação de trabalhos destinados a viver entre quatro paredes vistos por pouquíssimas pessoas. Ou seja, não trata-se de competir com museus e instituições públicas obviamente, mas sim de inventarmos novas maneiras de fazer com que essas obras hoje em casas e apartamentos, muitas vezes guardadas e não vistas pelos próprios donos, cheguem, mesmo que temporariamente, mais perto de todos e sejam pensadas, articuladas em público.
Nesse circuito ainda somente imaginado, haveria a tentativa de instaurar um espaço não só de obras expostas, mas de pensamento sobre a arte num sentido expandido. As obras seriam o ponto de partida, mas devido ao seu caráter não formatado, não institucionalizado, poderia haver ali um cruzamento de processos, aproximando diferentes atores da sociedade. Em “Para não dizer que não falei de arte 2”, coluna publicada no dia 12 de agosto neste caderno, Marcus Faustini afirmou: “A distribuição pela malha urbana de espaços de criação e recepção de experiências artísticas pode ser um dos termômetros considerados para medir o direito a essa mobilidade.” No texto, o autor buscava justamente imaginar formas ainda não existentes de circulação da arte na cidade, propondo “um espaço poroso e participativo, pois espaços de arte não guardam apenas repertórios para expor. São lugares de ação.”
As ideias de Faustini vão ao encontro do que tentamos esboçar — a necessidade de criarmos mecanismos que levem alguns desses trabalhos hoje abrigados em coleções para mais perto do público, fazendo com que a obra “viva”. Se o que está dito aqui parece tateante é porque não trata-se de um pensamento fechado, mas que surge com a vontade de abrir espaço para um debate permeado por mais perguntas do que certezas, mas convicto de sua pertinência.
Nesta edição da ArtRio, entretanto, uma iniciativa diferente chamava atenção: algumas obras expostas em diversas galerias traziam sinalização de que seriam do interesse do curador do Museu de Arte do Rio (MAR), Paulo Herkenhoff, para o acervo da instituição. Com isso, público e pessoas jurídicas podiam se oferecer para doar valores para as aquisições, em uma espécie de crowdfunding presencial. Vejamos com o balanço final, ainda a ser revelado, qual o impacto da ação.