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setembro 23, 2014
Bienal fora do eixo por Paula Alzugaray, Istoé
Bienal fora do eixo
Matéria de Paula Alzugaray originalmente publicada na revista Istoé, edição 2337, atualizada em 23 de setembro de 2014.
A segunda maior exibição de arte do planeta abre para o público com obras vindas de fora do circuito tradicional, imbuídas de críticas à indústria da religião, ao racismo e à violência nos países periféricos
A Ilha dos Astronautas Anciãos, a Península das Religiões OVNI, o Mar da Viagem Imaginária e a Trilha Hippie são algumas das regiões cartografadas no “Mapa” desenhado à mão pelo artista chinês Qiu Zhijie na parede da rampa do Pavilhão da Bienal. Esse mapa de cidades fictícias e locais utópicos funciona como um prólogo da 31ª Bienal de São Paulo, dedicada a pensar o papel da arte em um contexto de incertezas políticas, sociais e culturais. “As manifestações de junho de 2013 aconteceram apenas dois meses após recebermos o convite para a curadoria”, diz o espanhol Pablo Lafuente, do coletivo curatorial que assina esta edição do evento, composto por sete profissionais. A equipe trabalhou, portanto, no calor das manifestações que se alastraram por cidades brasileiras e elaborou uma exposição em resposta ao que ouviu. “A Bienal funciona como uma caixa de ressonância, para amplificar a insatisfação das ruas”, diz ele. Para lidar com o estado de transição que as sociedades vivem hoje, o grupo decidiu trabalhar com o que “não existe”. O resultado é a exposição “Como (...) Coisas que Não Existem”, título de formulação variável na qual os verbos são alternados e aplicados de acordo com a vontade do espectador. Leia-se, portanto, “Como Procurar, Reconhecer, Usar, Imaginar, Mapear, Materializar, Acreditar em Coisas que Não Existem”.
A Península das Religiões OVNI talvez não exista, mas a arte produzida em regiões consideradas remotas do planeta, marginais aos grandes centros, como Indonésia, Chipre, Índia, Senegal, Angola, Bolívia, Peru, Turquia, Líbano, Egito, Romênia, Rússia e Bósnia e Herzegovina, existe e está muito bem representada nesta exposição. “Falamos de coisas e lugares que de fato existem, mas que não estão estabelecidos por nossos parâmetros políticos e culturais”, diz a curadora associada Luiza Proença. Já a representação brasileira busca escapar ao eixo Rio–São Paulo e joga um foco de luz sobre a produção do Pará, de Mato Grosso do Sul e do Maranhão.
O trabalho do paraense Éder Oliveira é um exemplo dessa diretriz descentralizadora que orienta a exposição. O artista realizou nos muros de São Paulo e nas paredes da Bienal uma série de pinturas murais que têm como objeto jovens envolvidos em crimes, cujas fotografias são publicadas nas páginas policiais dos jornais. Estigmatização social e discriminação racial são denunciadas pela obra.
O estado transitório é um dos grandes eixos da mostra e aparece na obra da baiana Virginia de Medeiros. A videoinstalação “Sergio e Simone” retrata a transitoriedade de gêneros e a miscigenação religiosa em um só personagem. Simone é um travesti que cuida de um santuário para o culto de orixás e Sergio é um pastor evangélico messiânico. Ambos são a mesma pessoa.
A crítica às indústrias da fé e o crescimento das religiões evangélicas e neopentecostais são o mote do filme “Inferno”, da israelense Yael Bartana. O cenário é a réplica do Templo de Salomão construído em São Paulo pela Igreja Universal do Reino de Deus, e o roteiro imagina seu futuro trágico, repetindo profeticamente a sua destruição, até restar um muro de lamentações. Entre as imagens do filme, há passagens impagáveis, como um fiel de túnica branca andando de skate nas ruas de São Paulo e a especulação turística em torno do culto aos escombros. Os trabalhos do coletivo argentino Etcétera e do cineasta espanhol Val del Omar (1904-1982) também evocam imagens hereges como crítica às relações promíscuas entre a Igreja e as ditaduras e políticas repressivas.
Alternam-se, assim, diversas referências a cultos e armas, proferidas em várias línguas, sugerindo que o mundo todo vive um mesmo estado de incerteza. Outro ponto alto é “Wonderland”, do artista turco Halil Altindere, que adota a linguagem universal do videoclipe de rap para denunciar a perseguição às comunidades de etnia curda e a destruição de assentamentos seculares, no centro de Istambul.
Mas nem só de violência e trevas é feito o vigor imaginativo da 31ª Bienal. O vídeo da dupla Ines Doujak e John Barker (Austria e Inglaterra), por exemplo, é uma lufada de bom humor, trabalhando com música, fantasia, nonsense e surrealismo. Na proposta arquitetônica do andar térreo do edifício, outra mensagem de esperança, em que a curadoria procura passar o recado de que as coisas podem se transformar para melhor.
Intitulado de “Área Parque”, esse espaço teve suas portas abertas para os usuários do Parque do Ibirapuera e será palco de saraus, poesia hip-hop e performances de artistas da periferia. “Gostaríamos de usar o térreo como um espaço que ainda não é da arte, para ser usado por quem ainda não decidiu se se interessa por arte contemporânea. Será um espaço para provocar uma curiosidade e funcionar como uma entrada”, afirma Pablo Lafuente. Embora não possa ser usado como pista de skate, como a marquise, pelo menos é um espaço sem catracas.