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setembro 1, 2014
Bienal retrata mundo em violenta mutação a partir do olhar de excluídos por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Bienal retrata mundo em violenta mutação a partir do olhar de excluídos
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 1 de setembro de 2014.
Nas vidraças do pavilhão da Bienal de São Paulo, estão desenhos como o de um manifestante que enfrenta um policial com um coquetel molotov. Também está escrito que Ferguson, a cidade americana que entrou em convulsão com o assassinato recente de um jovem rapaz negro, é ela também toda negra.
Sentado ao lado da caixa de canetões que usou para fazer o trabalho abre-alas da mostra que começa nesta semana, o romeno Dan Perjovschi diz que seu projeto é uma "mistura de tudo que acontece no momento, com elementos da sociedade em geral".
E que ele nunca planeja nada -a obra surge dos jornais que lê e dos noticiários da TV.
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"É o momento atual no Brasil e em muitas partes do mundo", diz o britânico Charles Esche, curador da 31ª Bienal de São Paulo. "O que me interessa são artistas que estão olhando para o que acontece agora, não os que pesquisam a história da arte."
REPÚBLICA CURATORIAL
De fato, quando Esche e os demais curadores da mostra -os israelenses Galit Eilat e Oren Sagiv e os espanhóis Pablo Lafuente e Nuria Enguita Mayo- toparam formar uma espécie de república e dividir uma casa em São Paulo, desde maio do ano passado, já pensavam em criar algo com o calor do momento atual.
Só não esperavam que tal momento fosse tão quente -dos protestos de junho de 2013 à reviravolta nas eleições brasileiras, com a morte de um candidato, passando pelos tumultos na Copa do Mundo e os conflitos mais recentes na faixa de Gaza.
Essa guerra, aliás, turbinou o protesto de 55 dos 86 artistas da mostra, que lançaram um manifesto na última quinta-feira pedindo que a Fundação Bienal devolva o patrocínio que recebeu de Israel -cerca de R$ 90 mil do orçamento de R$ 24 milhões.
Um dia antes da revolta no pavilhão, orquestrada em clima de centro acadêmico com intermináveis assembleias entre os artistas, Esche já dizia ter certeza de que "haveria escândalos".
ABORTO E TRAVESTIS
Outro bafafá que estourou antes mesmo do início da mostra envolveu o filme da artista israelense Yael Bartana, que simula a destruição do novo megatemplo da Igreja Universal em São Paulo.
Essa obra, ainda inédita no país, foi alvo de denúncia ao Ministério Público por incitar o preconceito religioso, mas o órgão arquivou o caso.
E não deve mesmo faltar polêmica. A seleção de artistas da mostra, quase todos nomes desconhecidos do grande público e às margens do mercado, está calcada em obras que discutem temas candentes do momento, em geral partindo do olhar de minorias sociais e excluídos.
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No térreo do pavilhão, além dos desenhos de Perjovschi, o coletivo boliviano Mujeres Creando instalou seu "Espaço para Abortar", arena com casulos simbolizando úteros, que defende a descriminalização desse ato.
Também há um núcleo de artistas que subvertem ícones católicos, criando imagens como uma Nossa Senhora masculina, e um vídeo que narra a transformação de um travesti em pastor.
ESTRATÉGIAS
No fundo, são todos trabalhos que registram em tempo real os traumas de um mundo em mutação veloz.
Um dos agentes dessa transformação é a violência ou estratégias por trás dela, como o que mostra o filme do artista Gabriel Mascaro.
Usando meios que ele não revela, Mascaro conseguiu imagens feitas por policiais militares durante os protestos que varreram o país, mostrando que antes dos atos eles filmam os rostos e os sapatos dos manifestantes, para que, mesmo que usem máscaras mais tarde, possíveis suspeitos possam ser identificados pelos pés.
"Isso gera uma angústia muito grande em mim", diz Mascaro. "São momentos de vulnerabilidade imensa. Aquilo que afirma uma singularidade pode acabar gerando a prova de um crime."
Enquanto o poder público esquadrinha a multidão, o trabalho da artista Ana Lira mostra como o povo reage a símbolos do poder, registrando cartazes de políticos vandalizados nas ruas durante campanhas eleitorais.
"Meu trabalho fala sobre que leituras podemos fazer de intervenções espontâneas nos rostos dos políticos", diz Lira. "É uma reflexão sobre a fragilidade das imagens."
Bienal dos conflitos religiosos
A religião é um dos temas centrais da Bienal de São Paulo deste ano. Uma das obras mais polêmicas é o filme "Inferno", da artista israelense Yael Bartana. Ela simula no vídeo a destruição do recém-aberto Templo de Salomão, da Igreja Universal, em São Paulo. Bartana não considera a obra uma crítica aos evangélicos, e sim uma reflexão sobre a história
Bienal das Feministas
O ativismo aparece na mostra nesta instalação do coletivo boliviano Mujeres Creando. Em seu "Espaço para Abortar", as artistas mostram relatos de mulheres que interromperam a gravidez e convida o público a entrar nos úteros vermelhos
Bienal dos Transexuais
Um dos núcleos mais controversos da mostra inclui artistas que subvertem a iconografia católica, criando imagens como uma Nossa Senhora travesti, do performer peruano Giuseppe Campuzano,
entre outras provocações
Bienal das Guerras
A convulsão na política causada pelos casos recentes de espionagem entre governos se materializa na mostra em obras que lidam com documentos secretos, como a instalação da artista chilena Voluspa Jarpa. Em placas de acrílico, ela justapõe documentos sobre a ditadura brasileira elaborados pela CIA, agência de inteligência norte-americana, e arquivos dos serviços secretos do governo brasileiro do mandato de Getúlio Vargas
O QUE É A BIENAL?
A Bienal de São Paulo é a mais importante exposição da América Latina. Criada em 1951, por Ciccillo Matarazzo, foi inspirada na Bienal de Veneza. Hoje, dedica-se à produção contemporânea e funciona como um termômetro do estado atual da arte