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junho 12, 2014
Em mostra, Lais Myrrha faz arqueologia de um acidente por Camila Molina, Estado de S. Paulo
Em mostra, Lais Myrrha faz arqueologia de um acidente
Matéria de Camila Molina originalmente publicada no jornal Estado de S. Paulo em 9 de junho de 2014.
Projeto Gameleira 1971' é um resgate da história do desabamento ocorrido em obra creditada ao arquiteto Oscar Niemeyer
Lais Myrrha, Pivô, São Paulo, SP - 10/06/2014 a 02/08/2014
“A vida é uma esperança sob os escombros”, diz a legenda da fotografia que ilustra a reportagem publicada em 6 de fevereiro de 1971 em O Estado de S. Paulo sobre o desabamento do Pavilhão de Exposições da Gameleira, em Belo Horizonte. Até então, a equipe de resgate buscava os operários que estavam no local do acidente, ocorrido dois dias antes. Hoje, tanto tempo depois, os nomes de 117 mortos na tragédia estão estampados em uma das colunas do espaço cultural Pivô, no Copan, onde Lais Myrrha inaugura a exposição Projeto Gameleira 1971.
Trata-se de uma obra sobre os escombros da memória. Na verdade, fisicamente, seu primeiro impacto se dá com uma instalação feita de 72 blocos empilhados horizontalmente sobre o chão. As peças remetem às vigas de concreto que desabaram em fevereiro de 71 no canteiro de obras do pavilhão, que integraria um complexo arquitetônico no bairro da Gameleira, na capital mineira. O plano arquitetônico é creditado a Oscar Niemeyer (1907-2012), que, naquela época, vivia na França.
“Era inspirado no Ibirapuera”, conta a artista. Durante o horário de almoço, enquanto os operários faziam seu descanso, parte do teto da construção ruiu, transformando o fato em histórica fatalidade. Depois do ocorrido, o projeto foi totalmente demolido e o laudo responsabilizou o calculista da obra, o engenheiro Joaquim Cardozo (1897-1978), parceiro de Niemeyer na construção de Brasília, pelo desabamento. “O Cardozo refutou, dizendo que o concreto tinha tempo de cura, que não era esse o problema. Era um gênio, um poeta. Ficou deprimido, nunca mais fez nada.”
Mineira, que vive em São Paulo, Lais Myrrha, de 39 anos, afirma que sua exposição não é sobre Niemeyer ou ao “fracasso” do arquiteto. Entretanto, trazer essa história à tona é uma forma de “se falar do nível de esquecimento a que algo pode chegar”. É como se o ocorrido tivesse sido renegado da biografia do “ícone” da arquitetura mundial – ou como se a tragédia tivesse sido soterrada.
Sensação. “Geometrização do acidente” é como a instalação do Projeto Gameleira 1971 foi batizada por uma sugestão de Fernanda Brenner, diretora do Pivô, que comissionou a obra. As chamadas vigas, com cerca de 1,50 m, construídas com placas de reboco e pintadas com tinta cimentícia, criam uma imagem potente por si só, mas fica mais intrigante ainda quando comparada à fotografia do acervo do jornal Estado de Minas, mostrando policiais e bombeiros durante o resgate de vítimas em meio à estrutura desabada.
“É como se estivesse fazendo uma megamaquete e não um cenário que simule o acidente”, define a artista. “Não é um Ctrl C, Ctrl V da imagem, é a transposição do modelo”, comenta ainda Lais, completando que, nesse sentido, ela preservou a referência à fenda central que se formou entre os dois blocos de vigas desabadas na Gameleira. “Tento, de alguma forma, gerar uma sensação corporal.”
De fato, para essa experiência, o visitante da exposição tem a oportunidade de entrar em contato com a instalação de diferentes maneiras. Uma delas, é o embate frontal, mas há também a possibilidade de se ver a obra de uma das escadas do centro cultural – um olhar superior e mais distante – ou de uma passarela construída por cima das vigas.
“É um espaço muito irregular”, diz a artista sobre o local expositivo, abrigado no Copan, edifício em São Paulo que é um dos mais referenciais da trajetória de Niemeyer – entretanto, o arquiteto não reconheceu em sua biografia profissional os “puxadinhos” do interior do prédio. Lais conta que já tinha, há cerca de dez anos, vontade de realizar o Projeto Gameleira e sua concretização foi estimulada pelo próprio local que agora abriga esse trabalho.
O “memorial arqueológico” do trágico desabamento em Belo Horizonte continua depois da instalação, quando o espectador se depara com a coluna na qual estão escritos, em ordem alfabética, os nomes dos 117 mortos. Relacionados no Instituto Médico Legal, seus corpos foram encontrados ou não. Na parede, para serem lidos, eles formam a obra Em Memória do Silêncio do Arquiteto. “Acho que Niemeyer não tem culpa, em si, do acidente”, considera a artista. “Mas esse trabalho não é indissociável ao arquiteto.” Coincidentemente, Oscar Niemeyer é atualmente tema de uma grande exposição em cartaz no Itaú Cultural.