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março 26, 2014
50 anos do golpe: A arte foi à luta por Cristina Tardáguila e Maurício Meirelles, O Globo
50 anos do golpe: A arte foi à luta
Matéria de Cristina Tardáguila e Maurício Meirelles originalmente publicada no jornal O Globo em 23 de março de 2014.
RIO - Fernanda Montenegro foi ameaçada de morte pelo telefone. Do outro lado da linha, uma voz disse que ela levaria “um tiro certeiro na testa”. Dias mais tarde, uma bala estraçalhou a janela do quarto onde ela descansava. Na mesma época, José Celso Martinez Corrêa e seus companheiros do Teatro Oficina mandaram a bela italiana que trabalhava na bilheteria do grupo a Brasília para dormir com um censor e descolar a liberação da peça “O rei da vela”. Roberto Farias apresentava “Pra frente, Brasil” no Festival de Gramado quando soube que o filme havia sido censurado. Naquele dia, ele fazia 50 anos, mas a revolta se sobrepôs à alegria de ter levado o prêmio de melhor filme do festival. Tom Zé foi preso duas vezes e descobriu que, nas prisões políticas da ditadura militar, cada detento tinha que pagar 70 mil cruzeiros à polícia e dedurar um companheiro. Nas artes visuais, o regime não foi mais brando. Antonio Manuel fugiu de Salvador depois que a Bienal da Bahia foi fechada pelo Exército. Ele jamais recuperou o painel. Tempos depois, novamente foi proibido de exibir uma obra, numa exposição no Rio. “Foi como se me mutilassem”, diz.
Reunimos testemunhos desses e de outros artistas que tiveram suas vidas viradas do avesso pelo regime militar — cujo início completa cinco décadas no dia 31 —, além das visões dos colunistas Caetano Veloso e Adriana Calcanhotto. Os relatos deixam evidente também que, em contrapartida àqueles 21 anos sob ditadura, viveu-se um dos períodos mais férteis da produção cultural do país. Consolidaram-se, naquela época, nomes que seguem como referência nas artes nacionais.
A combinação de diferentes elementos contribuiu para tal fertilidade, dizem especialistas. A existência de um inimigo comum somou-se à expansão da TV e da indústria cultural no país, dando origem a um ambiente em que a criatividade ganhou fôlego para combater o moralismo hostil das fardas. Foi o tempo da linguagem cifrada, das críticas nas entrelinhas e da ironia dos cartuns.
Para pesquisadores da área, as duas décadas de ditadura podem ser divididas em três períodos distintos. O primeiro, entre 1964 e 1967. O segundo, de 1968 à Anistia, em 1979. E o terceiro nos anos 1980, na redemocratização do país. Os três reverberam até hoje na produção brasileira.
— Na primeira fase, vemos um deslocamento da cultura da elite para a classe média — afirma Mônica Almeida Kornis, doutora em Ciências das Comunicações da Fundação Getulio Vargas. — Até 1968, do ponto de vista formal e artístico, havia uma busca por uma linguagem inovadora. Naquele ano, “O bandido da luz vermelha” (de Rogério Sganzerla) trouxe a frase que define bem o momento posterior: “Quando a gente não pode nada, a gente avacalha”. A censura era fortíssima. Mas a TV se nacionalizou, a indústria cultural explodiu, e a música se expandiu com força nos festivais. Nos anos 1980, houve a diversificação dos produtos, e a ideia de inimigo comum se perdeu um pouco.