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Como atiçar a brasa

 


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dezembro 1, 2013

O sonho do vão-livre por Teixeira Coelho, Folha de S. Paulo

O sonho do vão-livre

Opinião de Teixeira Coelho originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 1 de dezembro de 2013.

O Masp, no passado, propôs grades nas laterais da esplanada. Órgãos do patrimônio não concordaram. Que liberdade se protege?

Pouco depois de aberta a mostra "A Terra Vista do Céu" no vão-livre do Masp e nas grades do Trianon, do outro lado da avenida, vi de novo o toque irresistível do efeito civilizatório da arte: fotos belas e intrigantes e uma luz sobre cada uma ao escurecer faziam as pessoas deter-se ali onde só passam apressadas (diante do Trianon) ou nem se atrevem a entrar (no vão-livre). Ninguém vendia nada, ninguém arengava ninguém: só a arte e as pessoas --e a cidade mudava um pouco. As pessoas se esqueciam até de que parar ali é virar presa fácil. A arte é perigosa de mil modos.

Não durou muito o efeito civilizatório: a insegurança no vão-livre levou à suspensão do serviço educativo da mostra. A ilusão se desfez.

O que fazer com o vão-livre do Masp que não é do Masp mas da prefeitura (quer dizer, de todos nós), a quem cabe cuidar dele e decidir o que com ele fazer?

Antes disso: o que é o vão-livre do Masp? Um lugar de sonho. Um sonho da arquitetura, a afirmar que a mente é mais forte que a natureza: quatro pilares sustentam um prédio, sem mais colunas ou paredes. O vão-livre era (já mudei o tempo do verbo) o sonho de uma vista desimpedida. Quando se fez, dali se podia ver longe rumo às montanhas. Hoje a vista é bloqueada por um espinheiro de prédios que a vista rejeita. Vista é patrimônio cultural mas a proteção do patrimônio não a viu. É preciso enxergar longe para proteger uma vista. Hoje, alguns entendem que "vão-livre" é "lugar que qualquer um pode usar para qualquer coisa quando quiser" --e se exibem fotos de concentrações e comícios no vão-livre. O sonho desse vão-livre é a liberdade. Sim. Só que também a liberdade se preserva. O Trianon não tinha grades; hoje tem. E depois de certa hora fica fechado, para proteger as pessoas. A liberdade fica lá dentro ou é fechada aqui fora?

E ressurgem as grades. Um jornalista me perguntou o que o Masp faz para evitar que pessoas se joguem no vazio desde a esplanada ou dela caiam e morram. O museu não tem poder sobre a área. Mas observa o que ali acontece e no passado propôs grades nas laterais da esplanada. E grades rebatíveis, alojadas e invisíveis no piso durante o dia e erguidas à noite, diante do vão-livre. Os órgãos do patrimônio não concordaram. Que liberdade se protege, qual não deve ser protegida?

O jornalista perguntou que mais o Masp proporia para o "problema do vão-livre". A arquiteta Lina Bo Bardi tinha outro sonho, como se vê num desenho seu: um grande parque infantil, sem grades. À época, anos 60, São Paulo era civilizada. Hoje, na cidade, como são as crianças autorizadas a usar um parque infantil? Atrás de grades. Os agressivos paralelepípedos que recobrem o chão do lugar não são amigáveis para esse uso, mas essa é outra história e não a única agressividade.

O que mais pode o Masp propor?, seguiu indagando o jornalista. O sonho da cultura e da arte o tempo todo, respondi, como caberia ao cartão postal da cidade e principal motivo para os turistas virem para cá. Não pode: todo fim de semana uma feira autorizada pela prefeitura ocupa o lugar, deixando para a arte apenas o fundo da esplanada, invisível e inacessível atrás das barracas. O sonho do comércio é mais forte que o sonho da arte.

O Louvre teve problemas: ladrões agiam em seu "vão-livre" e dentro do museu. Museus, como a arte, são o lugar do perigo. Mas, o Louvre é do Estado francês e o Estado francês resolveu ao seu modo: mais segurança. Um parque central em Berlim virou ponto de uso e venda aberta de drogas. Os vizinhos se fartaram e a "prefeita" do bairro abriu "cafés" para a venda de drogas leves, o parque reviveu. Os usuários e traficantes de droga têm seu sonho, os moradores da cidade e turistas têm outro. "Chegou a hora de aplicar soluções fora do comum", disse a "prefeita".

Sonhos viram pesadelos. São Paulo virou um pesadelo sem fim. O vão-livre do Masp que não é do Masp não pode sonhar sozinho. Pode esperar ter o mesmo pesadelo de todos --até que venham soluções fora do comum. (Às vezes, sonho que o Masp é um estorvo na cidade --porque arte e cultura são um estorvo no país. Mas acordo a tempo: um estorvo é mais positivo do que parece.)

TEIXEIRA COELHO, 69, é escritor, doutor em teoria literária pela USP e curador do Masp (Museu de Arte de São Paulo)

Posted by Patricia Canetti at 9:15 PM