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setembro 26, 2013
Mira Schendel ganha retrospectiva com 270 obras expostas em Londres por Vivian Oswald, O Globo
Mira Schendel ganha retrospectiva com 270 obras expostas em Londres
Matéria de Vivian Oswald originalmente publicada no jornal O Globo em 25 de setembro de 2013.
Artista brasileira nascida na Suíça ocupa 14 salas da Tate Modern
LONDRES - Quase meio século depois de uma exposição individual na extinta galeria Signals, na capital britânica, a obra da artista plástica Mira Schendel volta a Londres em grande estilo numa retrospectiva inédita que ocupa 14 salas da Tate Modern a partir de hoje. Parte importante das cerca de 270 obras pertence ao acervo da família da artista. Muitas delas estão sendo apresentadas ao público pela primeira vez.
Entre as obras inéditas está uma série monocromática das paisagens de Itatiaia, todas sem título, que pertencem à família da artista e, segundo a curadora da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Taisa Palhares, estavam esquecidas em uma gaveta. Os delicados “cadernos”, hoje estimados em cerca de 150, também estão na exposição londrina. Muitos deles pela primeira vez. Frágeis, quase não foram exibidos, até porque, segundo a própria artista, não teriam sido compreendidos pelo público. As imagens acabaram dando origem a um filme feito por um dos alunos do filósofo e amigo Max Bense, por ocasião de uma exposição de Mira na Alemanha. O filme também pode ser visto na Tate.
Organizada durante dois anos, a mostra reúne pinturas a óleo, gravuras, esculturas, trabalhos em papel; um pouco de tudo o que a artista produziu. E é fruto de uma parceria firmada entre a galeria britânica e a Pinacoteca do Estado de São Paulo, que levará a exposição para o Brasil em julho de 2014.
— Já foram realizadas exposições só de pinturas ou desenhos, mas nunca uma retrospectiva deste porte, porque é difícil entender a unidade do trabalho de Mira — diz Taisa.
Nascida em Zurique, na Suíça, e criada em Milão, na Itália, Myrrha Dagmar Dub, ou apenas Mira, como gostava de ser chamada, mudou-se para o Brasil em 1949, onde viveu e trabalhou de maneira incessante até sua morte, em 1988, aos 69 anos. Educada em ambiente católico, perseguida pelas origens judaicas durante a Segunda Guerra e forçada a abandonar a faculdade de Filosofia após a introdução de leis antissemitas na Itália, Mira acabou fugindo para a então Iugoslávia. E desembarcou em solo brasileiro, aos 30 anos, indo viver em Porto Alegre com o marido. Depois da separação, em 1953, seguiu para São Paulo, onde se aproximou de intelectuais e rapidamente se firmou na cena artística como um de seus expoentes, junto com Lygia Clark e Hélio Oiticica, reinventando a linguagem do modernismo europeu no Brasil.
A obra de Mira é um retrato de sua vida. Revela as raízes (o excesso ou a falta delas), as contradições religiosas e o interesse por filosofia, semiótica e os idiomas. De citações brasileiras a Chico Buarque e João Cabral de Melo Neto ou ao samba, passava para textos em italiano, alemão, que usava para devorar livros de filosofia, ou checo, idioma do segundo marido, além de citações da Bíblia.
— Ela era muito consciente dos idiomas, da maneira de operá-los e mostrar como a língua muda as experiências de mundo. Mover-se de um idioma para outro era mover-se de um mundo para outro — explica a curadora da Tate, Tanya Barsons, especialista em arte latino-americana.
Talvez por sua história tumultuada, Mira nunca tenha mergulhado em questões políticas, que tratava apenas de forma tangencial, segundo Taisa. A primeira vez que teria produzido peças abertamente políticas foi na série “Sarrafos”, de telas brancas com sarrafos negros que cortam parte delas, no fim da década de 1980, período de instabilidade no Brasil que Mira teria comparado ao entreguerras na Alemanha. Outra peça, “Ondas paradas de probabilidade”, de 1969 (pouco depois do AI-5 no Brasil), com fios de nylon que pendem do teto, acompanhados de uma citação da Bíblia, também é vista com conotação política. Feita para ser exposta naquele mesmo ano na Bienal de São Paulo, que ficou conhecida como a Bienal do Boicote, a obra desafiou os artistas brasileiros e estrangeiros que decidiram não participar do evento.
A exposição na Tate não é apenas o retorno da artista “transnacional”, como gostam de chamá-la os especialistas, à cena londrina, mas a um marco da sua vida. A individual de Mira na capital britânica em outubro de 1966 teve múltiplos significados para ela. Profissional e pessoalmente. Segundo Tanya, que também foi curadora da retrospectiva de Hélio Oiticica na Tate, em 2007, a vinda da artista a Londres naquela época marcou um momento de transição em sua carreira.
— Era uma nova fase de Mira, com uma obra de peso e um dos grandes momentos em que ela faria conexões com outros artistas importantes na cena internacional e que passariam a influenciá-la — diz Tanya.
A última exibição da badalada galeria alternativa Signals, que funcionou apenas entre 1964 e 1966, levou ao público londrino de então as mesmas obras feitas a partir de papel de arroz — “Droguinhas” e “Trenzinho”, além de algumas monotipias — que haviam sido expostas aos brasileiros no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro meses antes. Para a decepção da artista, a recepção no Brasil foi totalmente diferente, o que a levou a afirmar, em entrevista ao pintor Jorge Guinle, em 1981, que não havia sido compreendida no Rio. Agora, as peças estão todas de volta a Londres.
A ida da artista à capital britânica na época foi também sua primeira viagem à Europa desde que deixara o continente, no pós-guerra. Um reencontro com suas origens. E a primeira das várias viagens que passou a fazer em seguida à região, que já não sentia mais como sua casa, assim como o próprio Brasil, país que escolheu para passar o resto da vida.
A exposição fica em cartaz até o dia 19 de janeiro. De Londres, ela segue para a Fundação de Serralves — Museu de Arte Contemporânea, no Porto, em Portugal, para voltar ao Brasil no ano que vem. De 24 de julho a 19 de outubro de 2014, as obras de Mira Schendel estarão em exibição na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Por mais que se trate da mesma mostra, porém, para o público brasileiro a disposição das peças deve ser outra, menos didática ou cronológica como está sendo na Inglaterra.
—Vamos manter as peças centrais, mas será algo mais voltado para um público que a conhece melhor. Portanto, vamos brincar mais com as obras. Aliás, cada uma das exposições, a do Porto inclusive, será um pouco diferente — destaca Taisa.