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julho 31, 2013
Dizem que sou louco e Artista será tema de documentário rodado em 3D por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Dizem que sou louco
Matérias de Silas Martí originalmente publicadas no jornal Folha de S. Paulo em 31 de julho de 2013.
Livro revela o primeiro atestado de loucura do artista Bispo do Rosário e sua carreira de lutador
Um detalhe chama a atenção no primeiro prontuário médico escrito sobre Arthur Bispo do Rosário. Descrito como "calmo, de olhar vivo", com "ares de importância" e "fisionomia alegre", o paciente também podia associar "ideias com extravagância".
Não parece o diagnóstico de um louco, mas esse documento atestou loucura suficiente para que o artista sergipano, que morreu aos 80, em 1989, ficasse internado primeiro no hospício da Praia Vermelha e mais tarde na Colônia Juliano Moreira, no Rio.
Encontrado agora, esse prontuário, que será publicado pela primeira vez, é a peça-chave de uma extensa pesquisa --da psicóloga Flavia Corpas e do crítico de arte Frederico Morais-- que acaba de ganhar forma de livro.
Entre outros fatos, "Arte Além da Loucura" dá detalhes sobre o surto que levou Bispo do Rosário a ser trancafiado num hospício e sobre sua vida antes, como lutador de boxe e oficial da Marinha.
São dados que dissolvem uma série de mitos, em um momento de redescoberta da obra de Bispo do Rosário, exaltado como figura central da última Bienal de São Paulo e ocupando agora uma sala na Bienal de Veneza, com seus mantos e estandartes.
"Ele não vivia em estado permanente de delírio, sabia das coisas", diz Morais, em entrevista à Folha. "Essa ideia meio romântica da loucura não existe. Ele sabia o que estava fazendo o tempo todo e se tornou uma figura poderosa dentro do hospital. Há uma ordem interna muito forte no trabalho dele."
Mesmo que não falasse sobre o passado, detalhes de sua vida estão documentados nos estandartes que bordou: da infância numa fazenda de cacau na Bahia à ida ao Rio como marinheiro, passando por sua carreira de pugilista.
São avalanches de nomes escritos em ordem alfabética, os mais importantes bordados do lado de dentro de seu "Manto da Apresentação". Além do nome do pai, Bispo lembrou ali alguns adversários que enfrentou no ringue.
LOBO DO MAR
Não eram histórias inventadas. Jornais da época narravam de forma assídua os embates do lutador que nunca foi nocauteado e ficou conhecido como "lobo do mar", ou "marujo de bronze", dotado de "dureza granítica".
Em 1929, reportagem do "A Manhã" descreveu sua primeira luta profissional como "encarniçada", afirmando que ela "arrancou aplausos pela violência dos lutadores".
Mas depois que um bonde esmagou um osso de seu pé, Bispo deixou o ringue e foi trabalhar como empregado doméstico na casa da família Leone, uma das mais ricas e poderosas do Rio na época.
Humberto Leone, um dos herdeiros do clã, conta que Bispo era vaidoso e se vestia "com luxo", usava gravatas de seda e perfume francês.
Isso até o Natal de 1938, quando teve os três sonhos que o levaram a se apresentar num mosteiro como um enviado divino, que veio à Terra numa esteira de nuvens para impedir que o "espírito malíssimo" aqui chegasse.
Naquele primeiro prontuário, estão descritas suas alucinações, entre elas o sonho de uma "chuva de estrelas", que "explodiam fazendo barulhos incríveis", como se imaginasse o próprio destino de brilhar noutro ringue.
ARTE ALÉM DA LOUCURA
AUTOR Frederico Morais, Flavia Corpas (org.)
EDITORA Nau
QUANTO R$ 148 (296 págs.)
Artista será tema de documentário rodado em 3D
Depois de ver o documentário de Wim Wenders sobre a coreógrafa Pina Bausch, o primeiro filme desse tipo feito em 3D, a psicóloga Flavia Corpas pensou em usar o mesmo formato numa produção sobre Arthur Bispo do Rosário, que tem estreia prevista para o ano que vem.
"Vi que a obra do Bispo também é toda tridimensional, e que não seria um uso gratuito da tecnologia", diz Corpas, em entrevista à Folha. "Fiquei encantada com a ideia de um documentário em 3D, já que mesmo os bordados do Bispo reforçam esse aspecto no trabalho dele."
Numa parceria entre produtoras do Rio e de São Paulo, Corpas e a britânica Caren Moy, que assina com ela a direção, já registraram em 3D algumas mostras de Bispo, como sua sala na última Bienal de São Paulo e a exposição do artista no museu Victoria & Albert, em Londres, também no ano passado. Uma versão para TV também está sendo produzida.
Este será o primeiro filme sobre o artista desde que o psiquiatra e fotógrafo Hugo Denizart fez "O Prisioneiro da Passagem", documentário de 1982 para o qual Bispo deu uma longa entrevista.
Cenas daquele filme deverão ser reeditadas agora com novas imagens, além de documentos recém-descobertos, como seu primeiro prontuário médico e textos sobre sua carreira como boxeador.
"Tem um aspecto político importante resgatar a história dele da forma como ela aconteceu", diz Corpas. "E não de modo condizente com o que já inventaram."
(SM)