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julho 3, 2013
"Falta incentivo a ideias originais na ciência no país", diz neurocientista brasileira por Fernando Tadeu Moraes, Folha de S. Paulo
"Falta incentivo a ideias originais na ciência no país", diz neurocientista brasileira
Matéria de Fernando Tadeu Moraes originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 10 de junho de 2013.
A neurocientista Suzana Herculano-Houzel, 40, dedicou-se nos últimos anos a entender como o cérebro humano se tornou o que é. Seu trabalho a levou a ser a primeira brasileira convidada a falar no TED Global, famoso evento anual de conferências de curta duração que reúne convidados de várias áreas do conhecimento.
Herculano apresentará em sua fala de 15 minutos, nesta quarta, os resultados de suas pesquisas sobre como o cérebro humano chegou ao número incrivelmente alto de 86 bilhões de neurônios: o consumo de alimentos cozidos. "Entre os primatas, temos o maior cérebro sem sermos os maiores. Grandes primatas, com a sua dieta de comida crua, não possuem energia suficiente para sustentar um corpo enorme e um cérebro grande."
Na entrevista, concedida por telefone, a professora do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) dispara críticas à cultura brasileira de pesquisa científica, "que não incentiva a originalidade e a diversidade de pensamento", à pós graduação nacional, "muito fraca", e ao programa de bolsas Ciência Sem Fronteiras, "do jeito que está, parece demagogia" e defende a profissionalização da carreira de cientista.
Folha - Sobre o que a sra. vai falar na palestra no TED?
Suzana Herculano-Houzel - Vou apresentar o resultado do trabalho realizado no nosso laboratório, que mostra que o ser humano não é especial, nosso desenvolvimento cerebral não foge às regras que se aplicam aos outros primatas. Temos o maior cérebro primata sem sermos os maiores primatas. Como o tamanho do cérebro acompanha o tamanho do corpo, em geral, primatas maiores do que nós, como gorilas e orangotangos, deveriam ter um cérebro maior que o nosso e, no entanto, o gorila é duas a três vezes maior do que nós e nós temos um cérebro três vezes maior que o dos gorilas. Descobrimos que há uma explicação de origem metabólica para isso: quando calculamos a quantidade de energia que um primata obtém com a sua dieta de comida crua e quanto custa manter o corpo e o cérebro funcionando, descobrimos que os primatas não têm energia suficiente para sustentar um corpo enorme e um cérebro grande, com muitos neurônios. Também deveríamos obedecer à mesma regra, então nossos ancestrais conseguiram burlar essa limitação energética. Esse jeito, muito provavelmente, foi a invenção da cozinha, que transformou a maneira como aproveitamos as calorias, tornando os alimentos mais fáceis de serem mastigados e digeridos e, portanto, permitindo obter mais calorias em menos tempo.
Com a invenção da cozinha, ter um cérebro grande deixa de ser um risco e passa a ser uma vantagem, ao mesmo tempo que nos libera para fazer coisas mais interessantes com o nosso cérebro. Poderíamos pensar que isso nos faz especiais, mas se você olhar a evolução do cérebro dos primatas, é possível perceber que há muito tempo existe uma tendência de aumento do tamanho do cérebro, mas nos nossos ancestrais e nos grandes primatas isso tinha encontrado essa barreira metabólica.
Minha mensagem na palestra é que o que nos torna notáveis é o número alto de neurônios no córtex cerebral e conseguimos chegar a isso fazendo algo que nenhum outro animal faz que é cozinhar os alimentos.
Recentemente dois grandes projetos ligados à compreensão do cérebro foram anunciados. Na Europa, um investimento de 1 bilhão de euros será destinado a uma simulação em computador do cérebro funcionando e, nos EUA, um consórcio de cientistas vai mapear o cérebro. Como essas iniciativas se inserem no atual quadro de pesquisa da neurociência?
São desdobramentos do que já vinha sendo feito. Se você olhar para a história da pesquisa em neurociência, começamos tentando entender o que cada parte do cérebro faz, para que serve cada estrutura, e isso teve uma explosão extraordinária entre os anos 1990 e 2000 com as técnicas de ressonância magnética e tomografia computadorizada, que nos permitiram construir um mapa do que faz cada pedaço do cérebro. Nos últimos cinco anos, começou uma busca pela compreensão de como partes diferentes do cérebro interagem, colaboram e trocam informações. Nesse processo emerge a consciência, o autoconhecimento. Essa é a fronteira final nesse momento.
A sua pesquisa se relaciona de alguma forma com esses projetos?
De certa forma sim. Uma das coisas que estamos estudando e que faz parte de um artigo que acabamos de terminar é entender como os neurônios se distribuem ao longo do córtex humano [camada mais externa e sofisticada do cérebro], entre as diferentes áreas. Começamos uma pesquisa para saber qual é a relação entre a distribuição do número de neurônios e do número de sinapses, tentando entender as regras de construção do cérebro e como se dá a relação entre a distribuição de neurônios e as funções de cada área.
As iniciativas americana e europeia de compreender o cérebro e os experimentos de interface cérebro-máquina, como do brasileiro Miguel Nicolelis, receberam bastante atenção da mídia. A senhora acha que o não cumprimento dos objetivos pode gerar alguma frustração na sociedade e até descrédito para a neurociência?
Tudo depende de como as coisas são apresentadas. A maneira como eu entendo essa iniciativa do consórcio americano é compreender como o cérebro funciona como um todo. Mas, para vender isso para mídia, eles têm que colocar o propósito da cura do alzheimer, porque é um nome que as pessoas reconhecem e pensam "ah, isso é importante". Mas é importante que a mídia dê valor a esses assuntos, para que as pessoas passem a dar mais valor à pesquisa pelo conhecimento que geramos, e não só porque vamos curar doenças. Até porque se o público aprender a reconhecer o valor da ciência pela ciência, não tem por que ter frustração. Toda pesquisa bem feita traz, no mínimo, novas perguntas. Se a pesquisa é bem feita, não existe fracasso.
A senhora se divide entre a pesquisa e a divulgação de ciência, algo raro na nossa academia. Você acha que há uma falha de comunicação entre os cientistas e a sociedade?
Infelizmente a divulgação científica não é muito valorizada nem bem vista pelos cientistas. O CNPq [órgão federal de fomento à pesquisa], por exemplo, não considera a divulgação científica na conta da produtividade do cientista. Mas isso é compreensível. Dada a sobrecarga de ensino e pesquisa dos nossos cientistas, é difícil que eles ainda queiram fazer divulgação sem que isso lhes dê algum tipo de reconhecimento pelos seus esforços. Não sei se estaria fazendo divulgação se eu não tivesse voltado para o Brasil para fazer justamente isso. Depois é que eu voltei a fazer pesquisa.
Quais são os principais problemas na maneira como se faz pesquisa científica no Brasil?
Originalidade zero. Não existe incentivo à originalidade e à diversidade de pensamento. Quando eu cheguei nos EUA [para fazer o mestrado, em 1992], fiquei chocada ao descobrir que as pessoas não param cinco anos no mesmo lugar. Eles têm essa cultura de se mudar constantemente, o que favorece a diversidade de ideias. Aqui, a tradição é entrar na iniciação científica em um laboratório e continuar nele durante o mestrado, o doutorado e o pós-doutorado. E a tendência é a pessoa se aprofundar cada vez mais em um único assunto. Com isso, formamos jovens cientistas bitolados, tudo o que eles sabem é pensar em detalhes daquele único assunto que vêm desenvolvendo desde a iniciação científica. Além disso, a política de contratação nas universidades privilegia os ex-alunos. Criam-se colônias sem diversidade. Colônias em que você tem o fundador original, o chefe do laboratório, e as crias todas vão se espalhando ao seu redor, estudando a mesma coisa.
Como a senhora vê o atual estado da pós-graduação no Brasil?
O nível de exigência aqui é baixíssimo. Nos EUA e na Europa, após um ou dois anos no doutorado, você tem que apresentar o seu projeto de pesquisa original e, antes disso, precisa apresentar outro projeto de pesquisa sobre um tema que não seja da sua área só para provar a capacidade de raciocínio autônomo e original, de reconhecer um problema da ciência e propor um tratamento científico a ele. Aqui, temos um exame de conhecimentos, em que você precisa provar que domina um determinado assunto, mas com isso incentiva-se a repetir e não a gerar algo novo. No fundo, o aluno de doutorado aqui é uma pessoa que trabalha nas linhas de pesquisa de um determinando laboratório sem nenhuma exigência de que tenha contribuído de forma original para a ciência.
A formação dada pela nossa pós-graduação é ruim, então?
É fraca, muito fraca. Não porque faltem bons pesquisadores ou professores, mas porque não há cobrança, não se oferecem cursos com o professor ensinando na lousa, apenas seminários, como que dizendo: "O aluno que busque o conhecimento sozinho".
Como a senhora vê o investimento do governo no programa de bolsas Ciência sem Fronteiras?
Francamente, eu não entendo esse programa. Do jeito que está parece demagogia. Quando se começou a falar em Ciência sem Fronteiras, parecia um negócio extraordinário. Eu havia entendido que abriríamos as fronteiras nos dois sentidos, iríamos mandar jovens cientistas para fora e abrir as nossas fronteiras para os estrangeiros que quisessem vir trabalhar aqui. Poderíamos, quem sabe, acabar com o complexo de vira-lata da gente, de que só os outros que prestam, ao atrair pesquisadores de outros países. Não vemos isso acontecendo. O que se vê é uma porcentagem baixíssima de aprovação de projetos para trazer gente de fora. Pouquíssimas bolsas para enviar jovens para fazerem doutorado e pós-doutorado fora e uma massa enorme de dinheiro usada para mandar alunos de graduação para o estrangeiro, o que me choca pois, na minha avaliação, a graduação no Brasil é muito boa. Fiz graduação aqui na UFRJ e, quando cheguei aos EUA para fazer o mestrado, os professores achavam que eu era uma aluna extraordinária, pois já sabia coisas que eram dadas na pós-graduação de lá. Onde ficamos muito para trás é na pós-graduação.
Apesar de diversos estudos mostrando o malefício das drogas ao cérebro, a senhora tem se posicionado a favor da legalização. Por quê?
O problema maior das drogas é para aqueles que não têm nada a ver com a história e ficam presos no tiroteio, literalmente, que é a violência financiada pelo tráfico. No mundo ideal, gostaria que ninguém pudesse comprar drogas porque elas fazem mal e ponto. Mas também entendo que, por um lado, as pessoas deveriam ter liberdade para fritar o próprio cérebro em paz sem colocar as outras em risco. Vamos tornar as drogas acessíveis em farmácias, controladas pelo governo, para acabar com o tráfico. Mas sou contra a descriminalização, que só tranquiliza o usuário, que pode comprar a droga tranquilo, sem medo de ser preso. Sou a favor da legalização.
Há uma discussão hoje em torno da diminuição da maioridade penal. Do ponto de vista da neurociência, é possível dizer que alguns desses jovens que recentemente cometeram crimes bárbaros não sabiam o que estavam fazendo?
A adolescência é um processo que leva em torno de dez anos, as vezes até mais, e é um processo de transformação do cérebro, em que várias habilidades mudam, melhoram e a última delas é a de se colocar no lugar do outro e de ter um raciocínio consequente, entender os desdobramentos dos seus atos. Em torno de 17, 18 anos, em geral, essas habilidades de raciocínio consequente já existem e funcionam bem o suficiente para você caracterizar a pessoa como um adulto, mas é um processo. Qualquer idade que seja estabelecida vai ser arbitrária. A questão é se a idade que você escolhe como idade arbitrária é bastante segura ou não para você considerar em princípio que todos os jovens que já têm essa idade devem ter a capacidade de avaliar as consequências dos seus atos.
Dezoito anos, então, é uma idade razoável para ser usada como marco?
Acho perfeitamente razoável, talvez pudesse ser 19, ou 17 e meio, mas é importante reconhecer que essa idade é arbitrária. Além do mais, esses crimes hediondos cometidos por jovens não são cometidos porque a pessoa tinha 17 anos e cinco meses e, portanto, não tinha a capacidade de entender que quando ela estava jogando gasolina na dentista ela ia morrer se o fósforo fosse aceso. Uma criança tem essa capacidade. Nesse caso estamos falando de uma coisa diferente. Boa parte desses jovens que cometem crimes bárbaros, hediondos, é sociopata. Há a ideia de que a pobreza é culpa da classe média, de que o bandido é culpa da sociedade que não deu oportunidade. E é nesse tipo de sociedade que o sociopata floresce, uma pessoa perfeitamente sã, racional e capaz, por isso, de manipular os outros. Sociopata é um predador, causando problemas para todo mundo ao redor. Ele faz isso tanto melhor quanto mais as pessoas pensarem "pobrezinho, não é culpa dele, ele não fez nada de errado, ele não tem de ser punido". As pessoas nascem sociopatas e a sociedade tem de se saber como lidar com isso.
Como identificar esse jovem?
Psiquiatras bem treinados sabem fazer essa avaliação. Há sociopatas que jamais vão chegar a matar uma pessoa, mas ainda assim ele pode criar um monte de problemas para as pessoas ao redor dele. Mas considerando apenas os sociopatas que cometem crimes hediondos, eles devem ser reconhecidos e tratados como de fato de são, como uma pessoa cuja taxa de recuperação e de reinserção na sociedade é praticamente zero. E cuja taxa de reincidência é altíssima, não importa a idade. É isso que tem de ser levado em conta. No fundo, não importa a idade da maioridade penal.
A sra. vem defendendo a profissionalização do cientista. O que é isso?
Minha proposta é que o jovem que faz ciência tenha esse trabalho reconhecido, que seja considerado um cientista de fato. Um dos problemas do jovem que trabalha com ciência é que a própria família acha que eles estão de vagabundagem. O trabalho de pesquisa que um jovem faz sob a alcunha de estudante de pós-graduação é de verdade. Terminado o período da pós-graduação, esse jovem continua não tendo a possibilidade de ser contratado como cientista. São raros os institutos de pesquisa que contratam pesquisadores de fato no Brasil. Na grande maioria dos lugares, esse jovem vai ser contratado como professor. O primeiro problema é reconhecer que a pessoa que faz ciência tem um trabalho: ela se chama cientista. Hoje, eu não posso preencher uma ficha de dados e declarar como minha profissão cientista. Essa profissão não existe. E isso contribui para desvirtuar a pós-graduação, pois como o jovem que se forma não pode ser contratado como um pesquisador, a única maneira de ele continuar fazendo pesquisa é ele entrar para a pós-graduação. E ela então vira uma tábua de salvação, como a única maneira de continuar trabalhando no laboratório. E eles são a verdadeira mão de obra da pesquisa no Brasil. O número de publicação de artigos no país vem crescendo de mãos dados com o aumento no número de alunos de doutorado. Quem faz a pesquisa no Brasil são esses "alunos" da pós-graduação que, para mim, são cientistas, são trabalhadores, que deveriam ser reconhecidos como tais, com os direitos e deveres que todo trabalhador tem.
E o que a sra. propõe para melhorar esse quadro?
Proponho que se crie a profissão de cientista e que, para o jovem exercer a função de pesquisador, ele tenha de ser contratado. Se ele vai ou não fazer a pós-graduação também, isso passa a ser uma coisa à parte. A pós poderia passar a ser reservada, como deveria ser, àqueles alunos que demonstrem capacidade de raciocínio original, de propor novas ideias. A profissionalização do cientista não só resolveria o problema de o jovem recém-formado não ter o status de trabalhador com férias, décimo terceiro e tudo o mais, mas também ajudaria a resolver o problema da pós-graduação ser hoje uma tábua de salvação para os nosso jovens e não ser valorizada como ela deveria ser.
Como tem sido a repercussão dessas ideias dentro da universidade?
Críticas só de longe, por e-mail, sem mostrar a cara. Recebo muito apoio de alunos, que querem ter o seu trabalho reconhecido. Eu não entendo muito bem porque a ideia de profissionalizar a ciência incomoda tanto algumas pessoas. Mas as pessoas que se incomodam são as que estão lá no alto, são os diretores de institutos etc. Fica a impressão ruim de que eles não querem perder a mão de obra quase de graça. É muito comum ouvir: "Você está ganhando dinheiro para estudar". Esse é o tipo de mentalidade que mata a ciência. Isso é uma herança do século 18, pois os primeiros cientistas eram diletantes de famílias ricas, que não precisavam de dinheiro para fazer pesquisa. Hoje a realidade é outra, mas faltou mudar essa parte da pesquisa ser reconhecida como trabalho que é.
Quais são os próximos passos da sua pesquisa?
Estamos trabalhando com animais de cérebro enorme. Será o teste da nossa hipótese de que é o número de neurônios que importa e não simplesmente o tamanho do cérebro ou a relação com o tamanho do corpo. Estamos terminando agora de estudar um cérebro de elefante, depois baleias e estamos começando a trabalhar com pássaros para entender a diversidade de maneiras com o cérebro é construído e a relação que isso tem com as capacidades cognitivas e comportamentais dos diferentes animais. Mais adiante, vamos estudar a relação entre a construção do cérebro, o metabolismo e o sono. Por que animais de grupos diferentes têm necessidades diferentes de sono? E como isso está relacionado com o metabolismo do cérebro e o número de neurônios.