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junho 2, 2013
Retromania impera na 55ª Bienal de Veneza por Antonio Gonçalves Filho, Estado de S. Paulo
Retromania impera na 55ª Bienal de Veneza
Matéria de Antonio Gonçalves Filho originalmente publicada no jornal Estado de S. Paulo em 1 de junho de 2013.
Revival dos anos 1960 ultrapassa território oficial da mostra e também toma conta da exposição de Harald Szeemann
A retromania tomou conta da 55.ª edição da Bienal de Veneza. O clima nos pavilhões nacionais é de puro revival dos anos 1960, especialmente no italiano, que reuniu toda a turma de agitadores da época, de Giulio Paolini a Domenico Gnoli e Marisa Merz. O excesso é tão evidente que a parábola embutida nas performances do pavilhão romeno - uma crítica ao eurocentrismo da mostra italiana - dispensou as obras, trocando-as por paredes vazias e apresentações que refazem os principais momentos históricos da Bienal por meio de narração e mímica de atores.
O revival não se limita ao território oficial da mostra italiana, vale dizer, aos pavilhões nacionais localizados nos Giardini e Arsenale. Não muito longe da ponte de Rialto, a Fundação Prada abriu mostra cult de Harald Szeemann, Quando a Atitude Vira Forma, reeditando sua exposição realizada em 1969, que ajudou a promover a arte povera, entre outros movimentos.
O passado, no entanto, deixa de ser uma referência nostálgica quando aponta para o futuro, como faz o artista libanês Akram Zaatari num dos trabalhos mais emocionantes exibidos em Veneza, Letter To a Refusing Pilot. Como sugere o título, o vídeo é uma mensagem amorosa a um piloto israelense que se recusou a bombardear uma escola pública numa cidade ao sul do Líbano, em 1982, desafiando seu comandante. Zaatari era apenas um garoto de 16 anos, mas lembra bem de tudo. A obra mistura suas memórias com registros da ocupação do Líbano por tropas israelenses naquele ano.
Como diz Zaatari, "aprendemos que os fatos têm pelo menos dois lados". Ele resolveu dar sua versão, cruzando dados pessoais com documentos públicos, chegando mesmo a justapor em certo momento o diário de seu irmão Ahmad a um documento oficial da invasão do Líbano.
A abordagem do cineasta, certamente o mais prolífico e influente do Líbano, não tem formato documental, mas poético. Já na sequência inicial de Letter to a Refusing Pilot, o espectador é surpreendido com a imagem da capa do clássico livro de Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe. Como se sabe, Saint-Exupéry, além de escritor, era piloto. Trocou a França pelos EUA em 1940, quando os nazistas ocuparam Paris, mas voltou três anos depois para lutar com os aliados contra o fascismo e, em 1944, num voo de reconhecimento, seu avião desapareceu no Mediterrâneo. Ele nunca mais voltou ao lar.
Parece evidente a correlação entre a vida do piloto que se recusou a bombardear a escola pública libanesa e a desmobilização do escritor da Força Aérea francesa, seguida da derrota francesa e do armistício com a Alemanha nazista. Mas o filme de Zaatari não se resume a uma parábola. Seria, na definição dos curadores Sam Bardaouil e Till Felrath, quase uma peça do teatro épico brechtiano, "em que você se descobre ao mesmo tempo sendo o espectador, o narrador e algum personagem do filme". De fato, Zaatari coloca o espectador entre um vídeo de 45 minutos e um filme de 16 milímetros em looping, num cenário em que o foco é dirigido a uma cadeira vazia à espera de um espectador, capaz de entender que o "pequeno príncipe" de Saint-Exupéry não é uma metáfora banal sobre um menino voluntarioso que rejeita o desenho da uma ovelha, preferindo imaginá-la dentro de uma caixa. Ao contrário: é uma séria reflexão sobre o confronto da ética individual e o poder arbitrário das leis ditadas pelos Estados.