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fevereiro 20, 2013
Resposta ao apocalipse por Michel Laub, Folha de S. Paulo
Resposta ao apocalipse
Artigo de Michel Laub originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo em 15 de fevereiro de 2013.
Faça o teste: digite o nome de qualquer hit brasileiro dos anos 1980 no YouTube. Entre os comentários, 99% de chance de alguém ver ali os vestígios de uma era de ouro. A nostalgia inclui Rádio Táxi, Dr. Silvana, até o ursinho Blau-Blau, e pode ser resumida nas palavras do internauta Xreynato: "A mídia só dá valor para essas porqueiras de hoje".
Seria injusto dizer que foi isso, mas em alguns momentos pareceu isso o que fez a "Carta Capital" de 6/2. Sob a manchete "O vazio da cultura", nomes como Vladimir Safatle, Daniela Castro e Rosane Pavam diagnosticaram a situação da área no país. O tom geral é o de que não há mais grandes artistas, não há políticas públicas efetivas e a produção sucumbiu ao mercado e à vulgaridade.
Daria para responder de várias formas. Para começar, o passado sempre leva vantagem: é fácil citar três ou quatro mortos, pinçando-os entre centenas na vulgaridade de quando estavam vivos, e comparar suas obras hoje completas, de sentidos evidenciados por anos de distanciamento, com o caos fragmentário atual.
Também não enxergo a irrelevância brasileira, como defende Safatle, diante de equivalentes contemporâneos. Entre eles, a literatura chilena (unicamente Roberto Bolaño, que morava fora do país e lá situou seus melhores romances) e o cinema argentino (do qual só nos chegam os filmes importantes, alguns nem tão bons, quase todos sobre rescaldos da ditadura na vida de Ricardo Darín).
Mas gosto é discutível, claro. Interessa-me é outro ponto do artigo do professor: o que ele chama de "inibição do julgamento", que seria causa ou efeito de fatores como relativismo e condescendência populista. Sem crítica cultural rigorosa, diz o texto, não é possível consolidar uma cena com "capacidade de induzir novos artistas e dar visibilidade a problemas comuns".
O diagnóstico está correto em parte. De fato, o hábito de acompanhar a produção e medi-la sob a régua da elite pensante, no bom sentido do termo, está em crise. Um problema até quantitativo: quem consegue ler 50%, 30%, 1% dos livros publicados hoje? E quem está dando uma resposta analítica relevante nesse novo cenário?
Discordo é da conclusão de Safatle: a relação entre qualidade do que se produz e preparo e disposição de quem julga não é necessariamente direta. A primeira pode sobreviver sem a segunda. Da parte dos que se dedicam à tarefa de ser "antena cultural", e como colunista também integro o time, o embaralhamento de hierarquias parece se misturar à consciência melancólica da perda de poder.
Parece uma conclusão dura, mas só ela explica que --como faz Mino Carta no editorial da revista-- se considere o atual panorama tão pior que o de décadas anteriores. Cresci entre o fim do regime militar e o governo Sarney, e sei o que é ficar a mercê de pouquíssimos canais de difusão cultural --Embrafilme, meia dúzia de gravadoras e editoras, TV aberta sem concorrência.
Se falamos em indústria cultural, é lógico que ela terá menos poder numa época de hiperprodução descentralizada. Nos anos 1980, quando se tinha notícia de uma parte bem maior do que era lançado, a "crítica de peso" até tinha elementos para dizer que nada prestava (e dizia, lembro bem). Hoje, diante de um panorama infinito de artistas, obras e gêneros, que vão dos quadrinhos aos instrumentistas eruditos, do rap ao vídeo experimental, fazê-lo requer limitar a análise ao "mainstream" ou cair num reducionismo pretensioso.
Ao avaliar os últimos dez anos, Safatle não cita a palavra internet. É ela que, com o barateamento dos meios de produção de conteúdo, num impacto análogo ao da invenção da imprensa ou da revolução industrial, tornou a nova era tão difícil de ser interpretada. O cânone crítico sofreu com isso, não há dúvida, o que posso até lamentar. Quanto à arte, que é capaz de superar limites mercadológicos, tecnológicos e sociais (ou a falta deles), não vejo motivo para tanto pessimismo.
Afinal, nenhum contexto impede que a ele se reaja criativamente. Machado de Assis, um negro, surgiu no período escravocrata. A própria "Carta Capital" o cita e dá voz a nomes --como Kleber Mendonça, diretor de "O Som ao Redor"-- que seriam exceções ao apocalipse. A pergunta é: em que tempo, do Descobrimento a 2012, passando pelo reinado do ursinho Blau-Blau, artistas de verdade não o foram?