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fevereiro 6, 2013
Retrospectiva de Márcia X marca doação do acervo da artista ao MAM por Audrey Furlaneto, O Globo
Retrospectiva de Márcia X marca doação do acervo da artista ao MAM
Matéria de Audrey Furlaneto originalmente publicada no jornal O Globo em 1 de fevereiro de 2013.
Material vinha sendo preservado e catalogado desde a sua morte, em 2005
Público poderá levar peças para casa
RIO - Quando uma geração inteira se voltava para a pintura, Márcia X. correu o risco da performance. A carioca de classe média que estudou em colégio de freira e cresceu cabulando aula para ir ao Museu de Arte Moderna (MAM) não usou pincéis e tinta como seus pares dos anos 1980: atirou cédulas gigantes do alto de edifícios da Avenida Rio Branco, em 1983; invadiu o palco de um concerto de John Cage pilotando um infantil triciclo, em 1985; cobriu-se de leite condensado para falar de excessos, em 2001; deitou-se numa banheira de Coca-Cola, em 2003; e, em 2005, saiu de uma performance para o hospital onde morreria de câncer, aos 45 anos.
Meses depois, ainda sob o choque da morte da artista, seus amigos ajudaram a montar sua última individual no Rio, no Paço Imperial. Agora, oito anos depois, no mesmo MAM em que matava aulas, Márcia X. ganha uma retrospectiva com inauguração neste sábado, dia de sua morte e de Iemanjá, de quem era devota. Às 16h, o museu abre “Arquivo X”, mostra que marca a doação do acervo da artista à instituição.
Desde 2005, sua obra não era mostrada, não só pela dificuldade de se expor o trabalho de uma artista performática que sempre executou as próprias obras, mas também porque seu último marido, o artista Ricardo Ventura, cuidava da organização da grande quantidade de material deixado por ela.
Márcia documentava cada uma das obras: guardava seus registros em caprichados álbuns, etiquetados com informações sobre os trabalhos, e até criava livros-obras com colagens. Depois que venceram um edital para a catalogação do arquivo, Ventura e Beatriz Lemos, que de 2005 a 2007 trabalhou sozinha na organização do material deixado por Márcia, contrataram museólogos e restauradores para completar o trabalho e, enfim, entregar tudo ao MAM.
O corpo como obra
A jovem Beatriz, de 31 anos, agora assina a curadoria de “Arquivo X”. Fez fac-símiles dos livros de colagens da artista, que poderão ser manuseados pelo público. Decidiu, com Ventura, que se criaria uma réplica de um cantinho do colorido ateliê que Márcia teve por muitos anos no Catete. Também separou materiais que serão doados ao público (leia mais no texto ao lado).
“Arquivo X” faz jus ao título — é a exposição mais completa da artista, já que conta com seu arquivo completo e parte de textos em que ela dá pistas de como gostaria de ver a obra exposta. Márcia não usava atores e, embora fizesse projetos das ações, não escreveu instruções para que um outro as executasse. Suas performances ocorriam quase sempre dentro de instalações. No MAM, elas foram montadas ao lado dos vídeos antigos, em que Márcia atua nas performances.
A curadora decidiu não reencenar os trabalhos com atrizes após muito debate com Ricardo Ventura e também depois de ler uma entrevista, de 2001, em que Márcia deixa claro que as ações eram escritas para si mesma. No texto, ela dizia: “É forte a sensação física, interna, como motor da performance, até mesmo porque eu mesma faço as performances em vez de um outro fazer.”
Assim, a célebre “Ação de graças”, em que ela surgia deitada sobre grama com os pés enfiados em dois galos, é exposta no MAM como instalação. Estão lá a grama e os galos, enquanto um vídeo exibe a performance apresentada por ela em 2001, no Sérgio Porto.
Estão lá também registros de ações iniciais, como fotos de “Tricyclage”, a invasão do palco de John Cage, ou o néon vermelho de “Lavou a alma com Coca-Cola” que pairava sobre a banheira de refrigerante onde Márcia mergulhou. Estão lá os 500 terços que, com dedos, ela deu forma de falos em “Desenhando com terços”, de 2000. E estão lá os objetos da série “Fábrica Fallus”, que, nos anos 1990, projetaram a artista como uma das mais importantes de sua geração.
Há vibradores que se “abraçam”, um falo que sai da parede com correntinhas douradas penduradas e uma boneca que balança os quadris e pergunta, com a ironia típica da artista: “Vamos brincar de boneca?”
A exposição também contempla os desenhos de Márcia, pouco conhecidos ou inéditos, como uma série em que, com nanquim, ela desenha banquinhos que, na época, estavam no ateliê para um trabalho do marido, Ricardo Ventura. Eles foram casados por 12 anos e, como ocorreu no primeiro casamento dela, com Alex Hamburguer, criaram trabalhos em dupla.
Entre eles, está “Cadeira careca”, a performance da qual Márcia saiu para ir ao hospital e morrer em 2005. Nela, a artista está deitada, no Palácio Gustavo Capanema, sobre uma chaise longue criada por Le Corbusier. Ventura atua como um barbeiro e, lentamente, raspa a pele que cobre a cadeira em volta do corpo de Márcia. Os dois homenageavam então o arquiteto modernista.
Como criador do Orlândia, espaço numa casa de sua família, em Botafogo, que abrigou exposições, Ventura ofereceu espaço para a arte provocativa de Márcia, muitas vezes rejeitada pelas instituições.
— Ela apresentava projetos e, com frequência, recebia “não” como resposta. Quem a apoiava eram o Paço Imperial e o MAM — conta Ventura.
Entre as rejeições mais célebres da trajetória da artista está a ocorrida no Centro Cultural Banco do Brasil, que, um ano após a morte dela, selecionou uma imagem de “Desenhando com terços” para a coletiva “Erótica”. O trabalho de Márcia foi exposto em alguns dos centros culturais da rede, mas, no Rio, foi censurado.
— Ela não era ingênua. Quando fez o trabalho (com terços em forma de falos), perguntei: “Você tem coragem?” Ela seguiu em frente — lembra.
Prevendo polêmicas, o MAM instalará, nas entradas do museu e da sala da mostra, o seguinte aviso: “A exposição ‘Márcia X — Arquivo X’ não é aconselhável para menores de 18 anos, nem para pessoas que possam se ofender com a utilização de símbolos religiosos dentro de um contexto artístico bastante diverso do que estão acostumados”.
Público pode levar peças para casa
Se “Arquivo X” serve como marco da doação do acervo completo de Márcia X. ao MAM, também será a chance de o público levar para casa trabalhos, objetos e cópias de documentos que, um dia, estiveram no arquivo da artista performática.
Organizada e cuidadosa, ela conservou catálogos e livros de exposições de que participou, além de convites de mostras e postais. Também fez cópias de projetos e documentos, e guardou incontáveis objetos que costumava usar em seus trabalhos, caso das línguas de plástico que foram compradas em excesso por ela para a instalação “Baby beef”, de 1988, em que línguas vermelhas pareciam saltar de uma parede também vermelha.
Tudo isso estará à literalmente disposição do público no museu: amanhã, durante a abertura da mostra — que coincide com a data de morte da artista —, quem quiser poderá levar essa herança para casa.
Até mesmo o chamado “Anel X” criado por Márcia, que no lugar da “pedra preciosa” tinha um ímã redondo, está na lista. A curadora da exposição, Beatriz Lemos, mandou fazer réplicas do objeto, e, assim, o espectador poderá levar, como relíquia da mostra, um “Anel X” para chamar de seu.