|
novembro 28, 2012
Permanência e Caos por Luisa Duarte, O Globo
Permanência e Caos
Crítica de Luisa Duarte originalmente publicada no Segundo Caderno no jornal O Globo em 26 de novembro de 2012.
A primeira reação é de arrebatamento. Mesmo para aquele que entra na Galeria Anita Schwartz já sabendo um pouco do que vai encontrar, o que se vê gera espanto. A escala, as coisas, a quantidade, a variedade, a natureza do que se encontra exposto, em um mesmo espaço, tudo nos pega em uma alta voltagem. Os sentidos se alargam. Há muito para ver, cheirar, escutar. O que são afinal estas coisas que exaltam nossa percepção? Dois globos da morte com uma moto desligada em cada um, tais globos estão ligados por cabos de aço a quatro imensas estantes que circundam a grande sala de cem metros quadrados e pé direito de mais de sete metros. Nas prateleiras, mais de 1.500 objetos.
Aqui começa a narrativa no espaço pelos artistas Nuno Ramos e Eduardo Climachauska para a mostra “O globo da morte de tudo”. A exposição é resultado de um projeto que vem sendo pensado há dois anos pela dupla a partir do ritual da dádiva, da oferenda, existente em sociedades primitivas. Os objetos ali expostos foram em parte doados por amigos e parentes dos artistas, ora comprados. Os mesmos estão agrupados em quatro categorias que possuem, cada uma, um líquido que as atravessa e simboliza. Cerveja, que contém objetos da vida mais imediata e cotidiana; nanquim, objetos associados à morte; porcelana, uma mistura de taco branco e água, para os objetos ligados ao luxo; e cerâmica e barro diluído, evocando as coisas arcaicas e ancestrais. Estes líquidos e estes objetos se encontram empilhados em prateleiras de vidros planos e finos, formando um frágil equilíbrio, em um forte contraste com a presença agressiva e imponente dos dois imensos globos. Os objetos fazem assim uma espécie de inventário das coisas que nos cercam.
A grandiloquência da instalação é característica da obra de Nuno Ramos, bem como a referência à literatura, ao samba e ao poder da matéria. O imenso repertório presente nas prateleiras mostra a cotidianidade das cervejas que se misturam aos instrumentos musicais, aos troféus e equipamento de esportes, entes que sublinham o poder da vida. Porcelanas, perfumes, colares, o pó branco ao lado de taças de champanhe e laptops trazem uma evocação do luxo. Nanquim, papéis queimados, arquivos de escritores e músicos mortos remetem a morte. Filtros de barro, abridores de lata, arame farpado, atabaques, batedeiras velhas nos levam para o arcaico e ancestral.
Trepidação calculada:
Todos estes mundos que habitam um só espaço, mas estão separados por estantes diferentes, vão, enfim, se misturar. Como na vida, a contaminação se fará imperativa. As pulsões de vida e morte competem a todo momento, precisamos do mais arcaico para sobreviver, desejamos o mais supérfluo para gozar. Em meados de dezembro, profissionais de circo acionarão as motocicletas dentro dos globos da morte. Em uma ação calculada com a ajuda de engenheiros, a dupla de artistas vai assistir ao ruído provocado pelos motores e a trepidação dos globos (que formam o desenho de um oito infinito), assim os objetos despencarão das prateleiras, rumo ao chão. A exposição terá assim dois momentos: o antes e o depois da performance das motos.
Se por um lado há um gesto aí que recai na dessacralização da criação artística, o que mais chama atenção nesta narrativa potente posta por Ramos e Climachauska é o da fusão. Quando as experiências mais intensas da vida ocorrem invariavelmente acontece uma troca. No sexo, no amor, na amizade, no nascimento. Talvez somente a morte interrompa este ciclo incessante. Mas aqui a morte é de outra natureza, vivemos várias pequenas e grandes mortes, em vida. Todo luto nos ensina isso. Em “O globo da morte de tudo” irá ocorrer a contaminação do arcaico, do luxo, da vida e da morte. Aqui se lida com a imprevisibilidade contida no ato de tudo desabar e se misturar, fazendo com que aquilo que está, até agora, separado, editado, catalogado, no seu lugar, se torne prolongamento. Deste caos que vibra surge a convicção de que estamos vivos. Resta a coragem de entrar no globo e revirar tudo, sabendo que deste gesto se desdobra a fusão.
Fusão esta que, no mesmo lance, destrói e constrói, nos lança na morte e nos anuncia novas e insuspeitadas vidas. Aguardemos os nascimentos latentes nos globos da morte de tudo.
O globo da morte do globo.
Posted by: Martinz at dezembro 4, 2012 9:31 PM