|
novembro 27, 2012
Museu 2.0: a arte de ouvir o público por Audrey Furlaneto, O Globo
Museu 2.0: a arte de ouvir o público
Matéria de Audrey Furlaneto originalmente publicada no caderno de Cultura do jornal O Globo em 27 de novembro de 2012.
Para sobreviver no século XXI, instituições precisam aceitar opiniões, dizem estudiosos e curadores de todo o mundo em livro organizado por pesquisador carioca
RIO - No colo da dona, o gato se contorce de prazer com as cócegas no pelo acinzentado. Ela interrompe o carinho e solta um gritinho. E o bichano parece responder, exibindo as patinhas rosadas como se pedisse mais. São poucos segundos, mas são segundos hipnóticos. O Walker Art Center, em Minneapolis, nos Estados Unidos, entendeu o poder de um felino em cena. Organizou um festival em seu jardim só com vídeos de gatos no YouTube. Foi a maior audiência do museu: dez mil visitantes num dia.
Na pequena cidade de Santa Cruz, na Califórnia, um museu convidou o público a expor suas memórias em pequenos jarros de vidro. Lotou o primeiro andar com os potinhos de histórias. Também pediu aos visitantes que mostrassem lá suas próprias coleções — e nada da monotonia dos acervos que se levam a sério demais. A vizinhança do Santa Cruz Museum of Art and History coleciona de caveiras de animais e eletrodomésticos a bandeiras da guerra civil americana. Ao envolver o público na instituição, o museu viu a audiência passar de dez mil pessoas em 2011 para mais de 23 mil em 2012.
— O grande salto de um museu atualmente é saber olhar para o público — diz Luis Marcelo Mendes, há 20 anos pesquisador de cultura e branding, que acaba de organizar num livro pensamentos e relatos de experiências bem-sucedidas em museus mundo afora.
“Reprograme” reúne ensaios de filósofos como Alain de Botton, diretores de museus como Nina Simon (à frente da instituição de Santa Cruz, na Califórnia) e consultores como Robert Jones, tido como o “inventor” da marca Tate Modern, de Londres, e do New Museum, de Nova York. Em todos os textos do livro, que a Ímã Editorial lança no dia 11 de dezembro, é consenso: se quiserem sobreviver, no século XXI, os museus precisam aprender a ouvir o público. Ou, como diz Robert Jones em ensaio que integra o livro, um museu não pode ser pensado como uma catedral, mas como um “bazar de troca”.
Experimentação coletiva
O Internet Cat Video Festival, a mostra dos gatinhos no Walker Art Center, é um bom exemplo da nova forma de pensar (e dessacralizar) as instituições. A diretora do museu, Sarah Schultz, conta que o público podia enviar seus vídeos preferidos e que cerca de dez mil pessoas contribuíram com a “curadoria”.
— Os visitantes vinham de outras cidades, havia muitas famílias, gente vestida com fantasia de gato e milhares de pessoas que simplesmente estavam curiosas e não queriam perder a experiência — lembra Sarah, em entrevista ao GLOBO. — O evento nos mostrou o quanto as pessoas querem ficar juntas em tempo real. Isso é, na verdade, a lição mais importante de todo o nosso trabalho com o open field.
Open field é o jardim vizinho ao museu, há três anos usado para projetos colaborativos entre artistas e a comunidade. Lá, há de aulas de ioga a um clube de desenho, com oficinas semanais em parceria com um artista. O programa, diz a diretora do Walker Art Center, tem estrutura simples e custa pouco — o que confirma uma das teorias defendidas por Luis Marcelo Mendes: os problemas de orçamento não podem servir de esconderijo para diretores e curadores de museus. Em geral, ele diz, a saída está numa ideia simples e criativa, como o festival do YouTube ou os potes de memórias.
— As pessoas desejam experimentação coletiva. Inteligentes são os museus que percebem isso. Vá à fila do CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) e você verá que as pessoas quase nunca estão sozinhas. Não se espera quatro horas numa fila sozinho — diz ele, lembrando que a autorização para fotografar pode ser crucial na atração do público. — O barato da mostra do Escher (a mais vista do mundo em 2011, com mais de nove mil pessoas por dia, no CCBB do Rio) era o fato de poder fotografar e compartilhar. Esse é um verbo crucial no museu do futuro.
Um dos consultores do Museu do Amanhã e do Museu de Arte do Rio (MAR), ambos em construção na Zona Portuária da cidade, Mendes lembra experiências como um flashmob no Museu d’Orsay, em Paris. Diante do impedimento de fotografar as obras, um grupo grande de pessoas decidiu fotografar mesmo assim — e todos sacaram seus celulares ao mesmo tempo, deixando a segurança em pânico.
— O museu precisa passar da ideia de autoridade para a ideia de compartilhamento. Ouvir o outro é fundamental — defende, e lança em seguida a questão: — Qual foi a última vez que você foi a um museu no Rio e foi perguntado: “Você gostou da exposição? O que acha que podemos fazer para melhorar?”
Todo o poder ao público
No Brasil, são raros os exemplos de sucesso. Mendes lembra o Museu do Futebol, em São Paulo, onde colecionadores de camisetas dos clubes se reúnem constantemente. “Inteligente", como ele define, o museu poderia simplesmente ignorar, mas “acolhe” as reuniões e ganha mais adesão do público. São de São Paulo também outras experiências positivas segundo ele, como a Pinacoteca e o Museu da Língua Portuguesa. No Rio, ele lamenta, os museus ainda engatinham no relacionamento com o público.
— A programação do MAM (Museu de Arte Moderna) é incrível, o trabalho de curadoria (de Luiz Camillo Osorio) tem sido espetacular, mas ir ao museu ainda é uma experiência ruim. Você precisa lidar com flanelinhas, moradores de rua, há lixo no entorno, o restaurante é caríssimo, o café nem sempre está aberto... — lista ele.
O sentido é um tanto oposto ao de marcas consagradas na cultura mundial, caso do MoMA, em Nova York. Valendo-se de seu próprio prestígio, o museu criou exposições como a “I went to MoMA and...” (“Eu fui ao MoMA e...”), em que o público era convidado a relatar suas experiências no museu. O material foi usado não só para cobrir as paredes internas da instituição, mas também como cartaz publicitário nas ruas da cidade. Menos barata, mas não menos atraente, foi a experiência de levar ao museu, em abril deste ano, o grupo alemão Kraftwerk, pioneiro da música eletrônica, para apresentar seus oito álbuns em sequência.
— Que outra instituição no mundo faz isso? Precisamos entender que há coisas que só o museu pode fazer. Por que 74 mil pessoas vão à ArtRio (em quatro dias) e não vão ao MAM? O que tem ali que não tem no MAM? — pergunta ele, para em seguida responder: — É um tipo de experimentação para o padrão das pessoas.
Outro exemplo de “compreensão do outro” na museologia se deu em Denver, no Colorado, estado americano que tem a criação de gado entre as principais fontes de renda. Seu museu de arte contemporânea percebeu que, para que o público abraçasse a instituição, era preciso “expor” o que o povo de Denver tem em comum: o gosto por carne. Estava criada a ideia da mostra “Art meets beast”, que levou vários “artistas” da carne (açougueiros, cozinheiros...) ao museu para exibir sua “arte” e conversar com o público.
— O museu precisa entender o que é valioso para o outro, e não para si mesmo. No museu do futuro, todo o poder emana do povo.