|
setembro 28, 2012
Perto do coração por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Perto do coração
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 28 de setembro de 2012.
Biografia narra em detalhes vida de Matisse e conta como o artista francês criou obras revolucionárias
"Se minha história fosse contada em detalhes, deixaria espantados todos que a lessem", escreveu Henri Matisse. "Quando fui arrastado pela lama, nunca protestei. À medida que passa o tempo, cada vez mais me convenço de quanto fui injustiçado."
Um dos artistas mais revolucionários da história da arte, o francês conhecido por suas telas berrantes, carregadas de cor, passou a vida sendo alvo de ataques de seus contemporâneos, que não entendiam aonde ele queria chegar com sua obsessão.
Da fama de louco à consagração como líder da vanguarda parisiense no começo do século 20, a trajetória de Matisse está agora esmiuçada numa extensa biografia.
Hilary Spurling, a autora de "Matisse, Uma Vida", que sai agora pela Cosac Naify, passou 12 anos fazendo entrevistas e visitando todos os pontos por onde o artista passou em busca da luz de suas obras, compondo um retrato minucioso de seu trabalho.
Embora tenha quase 600 páginas, a versão brasileira do livro é a junção condensada de dois tomos originais escritos por Spurling, que considera essa a edição definitiva da obra, livre de excessos.
"Uma biografia é um retrato da pessoa, como uma pintura", diz Spurling, em entrevista à Folha. "Mas, se estiver muito carregada de detalhes, é impossível chegar à essência do personagem."
Matisse concordaria. "Quando fecho os olhos, consigo ver melhor do que com eles abertos", escreveu.
"Vejo o tema despojado de detalhes incidentais -é isso o que pinto."
Mas o artista manteve os olhos bem abertos para a luz radiante do sul da França, do Marrocos e até das ilhas do Pacífico para criar suas telas.
Nascido numa zona industrial do norte da França em 1869, Matisse morreu em 1954 aclamado como o pintor do sul, que extraiu do sol do Mediterrâneo a luminosidade de seus trabalhos mais célebres, como "Dança" e "Música".
Mas não foi uma rota sem percalços. Ele encarou a ira do pai, que discordava de sua decisão de ser artista, fugiu para Paris e acabou se decepcionando com um meio artístico incapaz de digerir a vanguarda dos impressionistas então em voga e muito menos de aceitar suas obras.
"Era como chegar a um país onde se fala outra língua", escreveu Matisse. "Achava que seria incapaz de pintar."
Essa dúvida prevaleceu ao longo de toda a carreira. Matisse se questionava o tempo todo e foi atacado por críticos da época pela "confusão deliberada" e "selvageria gratuita" de suas composições.
Em crise, chegou a pensar em se matar. "Seu corpo reagia com violência a tudo que se interpunha entre ele e sua pintura", escreveu Spurling. "E isso ocorreu desde as misteriosas dores nas costas que o afligiam na adolescência."
Matisse viveu entre o paraíso e o inferno
Artista, que criou obras estonteantes, se isolou para pintar e foi repudiado pela crítica quase toda a sua vida
Livro analisa relação conturbada do pintor com contemporâneos seus, como Picasso, Rénoir e Cézanne
Não seria exagero dizer que a obra de Henri Matisse foi construída na solidão. "O mundo todo lhe deu as costas", contou Lydia Delectorskaya, sua última mulher. "Todos se alinharam aos cubistas, e ele nunca quis se expor, demonstrar o quanto aquilo o machucou."
Matisse então fugiu para compor sua obra. Nos dois momentos chave de sua produção -os anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, quando fez a "Dança", e o fim da vida, quando criou suas colagens de papel recortado-, o artista estava quase sempre sozinho.
Em sua biografia, Hilary Spurling revê a relação complicada do artista com seus contemporâneos, da reverência que tinha por Cézanne, "um deus para ele", e a amizade com Renoir aos atritos intensos com Picasso.
"Eles se reconheciam como rivais", diz Spurling sobre a relação entre Matisse e Picaso. "Mas as brigas fizeram com que cada um tentasse coisas que antes seriam impossíveis em seus trabalhos."
Em reação ao "Nu Azul", de Matisse, Picasso começou a pintar "Les Demoiselles d'Avignon", obra que inaugurou o movimento cubista.
Mas as aproximações não vão muito além. Matisse estava mais preocupado com a vibração das cores do que em rever conceitos de volume e espaço. Suas obras eram visões "estonteantes, ofuscantes e alegres", "um clamor que parecia berrar das paredes".
Ele pendurou na porta de seu ateliê um pequeno quadro de Cézanne e tinha o hábito de olhar para a tela do mestre pós-impressionista antes de trabalhar, uma espécie de guia visual.
Na construção de sua obra, no entanto, Matisse só teve o apoio real da mulher com quem passou quase toda a sua vida, Amélie Parayre.
Num de seus retratos mais célebres, que escandalizou Paris, ele pintou o rosto dela cortado ao meio por uma faixa verde, dividindo a tela em fortes campos de cor, quase uma síntese de seu estilo.
ESPINHA DORSAL
"Amélie era a única pessoa que acreditava nele no mundo", diz Spurling. "Ele dizia que a amava, mas que amava mais a pintura. Essa era a condição do casamento, e ela foi sua espinha dorsal."
Tanto que muito da história de Matisse está na correspondência entre eles. Em suas viagens, Matisse escrevia quase todos os dias à mulher, num estilo que sua biógrafa compara ao fluxo de consciência de Virginia Woolf.
Numa das cartas, ele descreve apaixonado a paisagem marroquina: "Quando parou a chuva, brotou da terra uma vegetação florescente", escreveu. "Todas as colinas em torno de Tânger, antes cor de pele de leão, ficaram recobertas de um verde extraordinário sob o céu turbulento, como num quadro de Delacroix."
"Ele foi um dos grandes missivistas do século 20", diz Spurling. "Ler essas cartas é como estar na pele dele, ver o mundo pelos olhos dele."
Muitas dessas visões, aliás, são recorrentes também na obra do artista. Em várias fases da vida, Matisse voltaria a alguns temas com certa insistência, quase um reflexo do que sentia no momento.
Quando se mudou para o balneário de Collioure, no sul da França, Matisse pintou uma janela aberta à luz ultracolorida, exemplo de sua "convicção de que a pintura dá acesso a outro mundo".
Mais tarde, em 1914, às vésperas da Primeira Guerra, ele volta ao tema, mas pinta um vazio negro visto pela janela, o que o poeta Louis Aragon viu como abertura para "o silêncio de um futuro negro".
São dois pontos de vista que refletem o céu e o inferno da vida real de Matisse, um artista atormentado pela incerteza e pela obsessão.
Ao final da vida, ele diria que suas telas mais alegres surgiram em momentos amargos-uma luz que vem das trevas.
MATISSE: UMA VIDA
AUTOR Hilary Spurling
TRADUTOR Claudio Marcondes
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 109 (592 págs.)
Raio-x: Henri Matisse
VIDA
Nasceu em 1869 em Le Cateau-Cambrésis, na França. Viveu e trabalhou em Paris e em Nice, e criou suas obras no Mediterrâneo, em ilhas do Pacífico e no Marrocos. Morreu em Nice, em 1954
OBRA
Ficou conhecido por obras monumentais como o tríptico "Dança", hoje no Hermitage, em São Petersburgo (Rússia). Também fez "O Ateliê Vermelho", hoje no acervo do MoMA, em NY
ESTILO
Foi enquadrado entre os fovistas por recriar nas telas a luminosidade intensa do Mediterrâneo. É considerado um dos maiores coloristas da história da arte