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agosto 28, 2012
Nuno Ramos enterra três casas no barro em mostra por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Nuno Ramos enterra três casas no barro em mostra
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 28 de agosto de 2012.
Nuno Ramos está com o braço enfiado na lama. Ele testa a consistência do barro branco em que afundou uma das três casas que decidiu sepultar na mais monumental obra de sua carreira até hoje.
Em 2014, Nuno Ramos terá pavilhão em Inhotim
O artista escavou o chão da galeria Celma Albuquerque, no centro de Belo Horizonte, para enterrar réplicas das casas onde cresceu, onde seus filhos nasceram e onde mora em São Paulo, uma espécie de afundamento da memória.
Pedaços das fachadas, um telhado inteiro e o sótão de uma delas saltam para fora de três piscinas de lama.
A casa de mármore negro parece brotar de um lamaçal retinto. Outra, de areia socada, afunda no barro marrom, enquanto a branca, a maior de todas elas, lembra uma coluna vertebral de telhas que abraça os pilares da galeria num pântano imaculado.
São mais de 300 toneladas de matéria. É o peso bruto do concreto arrancado do chão, das placas de mármore e de granito e de toda a areia que compõe uma das casas.
"Tem um certo sacrifício nessa obra", diz Ramos, numa pausa na montagem da mostra que será aberta no começo de setembro, depois de um mês de quebradeira na galeria. "Queria essa situação de luta e confronto mesmo."
Ramos, aliás, tem feito de suas obras um reflexo dos confrontos que enfrentou na vida real.
Seu trabalho mais recente, o desmanche fúnebre das casas na lama, tem a ver com a morte de sua mãe há cerca de um ano e meio e seu contato com "essas coisas reais", nas palavras dele.
"É oferecer essas coisas para perder, jogar fora", diz Ramos. "Tem essa coisa de dádiva, uma troca amalucada, sem medidas exatas."
Seu sacrifício aqui é matar construções inteiras num cenário catastrófico que contrasta com a limpidez das formas, a lama plástica que reflete as luzes da galeria e a pedra reluzente das esculturas criadas para serem escombros --uma espécie de ruína calculada.
Cenário não é o termo: este é um teatro real, em que as casas afundadas têm a medida exata das que replicam.
Ramos dirige a cena mais como um engenheiro calculista do que um cineasta. Com o mesmo cálculo com que armou um viveiro de urubus na Bienal de São Paulo, fez um avião se espatifar na copa de uma árvore no Museu de Arte Moderna do Rio ou um barco de pedra-sabão encalhar no meio de uma galeria.
"A imaginação é muito autêntica, mas, no meu caso, é a matéria que põe as coisas no lugar", explica. "Nunca mexi com matéria nenhuma em sentido simbólico. Quero que a presença das coisas venha antes da interpretação."
HISTÉRICO E SOLENE
A presença, aqui, é inequívoca. Tanto que, na galeria, mal cabe o público. A cena causa espanto vista da calçada, através das janelas.
Do mesmo modo, a mostra que o artista abre no Rio, em novembro, será um espetáculo fechado. Nele, dois globos da morte cercados de estruturas de vidro e peças quebradiças ocuparão todo o espaço da galeria Anita Schwartz.
Haverá um antes --a estrutura toda montada e cercada de objetos frágeis-- e um depois --o caos que segue a performance furiosa das motocicletas pelos globos metálicos.
Ramos reconhece a ambivalência entre histeria e solenidade como chave de sua obra. "Há uma dissonância que adoro ocupar", diz. "É um globo da morte de tudo, algo histérico, enquanto essa carga de silêncio que tem aqui é o que não tem lá."
Ele vê um contraste entre a fúria de seus desenhos e pinturas --obras do início da carreira carregadas de objetos que saltam das telas-- e o tom mais soturno das casas afundadas e do voo dos urubus entre lápides de areia.
Em todos os casos, seria o que ele chama de "milagre físico da obra", uma poesia que afirma por trás dos aspectos visuais de seu trabalho -a transformação mesma de versos em matéria.
No caso das casas lembram as construções evocadas por Carlos Drummond de Andrade no poema "Morte das Casas de Ouro Preto". Ele refaz as casas que "morrem severas" do poeta mineiro. Tenta recriar o chão que "começa a chamar as formas estruturadas faz tanto tempo".
"Todo caos é uma reconfiguração", resume o artista. "Toda violência e destruição reconfigura outra ordem. Aqui a imaginação ganha uma dimensão corpórea."
Em 2014, Nuno Ramos terá pavilhão em Inhotim
Depois de afundar suas casas na lama, Nuno Ramos vai construir no Instituto Inhotim, nos arredores da capital mineira, um pavilhão para abrigar de forma permanente as obras que está tão acostumado a fazer e desfazer.
Nuno Ramos enterra três casas no barro em mostra
Pela escala monumental de seu trabalho, peças como o viveiro de urubus da Bienal de São Paulo, as casas afundadas, o avião do Museu de Arte Moderna do Rio ou mesmo os globos da morte que vai montar neste ano acabam sendo projetos efêmeros.
Tanto que o artista trabalha agora com uma arquiteta, que estuda cada peça e documentar o processo de feitura. Em Inhotim, onde seu pavilhão deve ser inaugurado em 2014, muitas delas serão refeitas.
"Vamos fazer um ajuste do prédio às obras, como um prédio fabril que se ajusta às máquinas", diz Ramos. "É reforçar meu lado contrastante de artista que faz obras que nem parecem do mesmo autor."
Ramos ainda estuda a seleção das peças com Rodrigo Moura, um dos curadores de Inhotim, mas adianta que o espaço terá pinturas, obras de areia e sabão e a instalação "111", sobre a chacina de presos no Carandiru em 1992.
Allen Roscoe, arquiteto que executou as peças de aço de Amilcar de Castro e Franz Weissmann e também ajudou Ramos a afundar suas casas na lama, fará o projeto do pavilhão.
"Será como o desenho de uma indústria", diz Roscoe. "Não tem a preocupação de exaltar a arquitetura, é só uma estrutura para o trabalho, já que o foco não deve ser o prédio."