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julho 12, 2012
Ilusionismo da cor por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Ilusionismo da cor
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 12 de julho de 2012.
Cruz-Diez mostra na Pinacoteca suas telas mutantes e diz que arte é como 'bomba no tempo'
De sua desilusão com o realismo, Carlos Cruz-Diez forjou um arsenal de ilusões.
Em vez de denunciar questões sociais em quadros figurativos, como fez no início da carreira, o artista venezuelano decidiu recriar em sua obra toda a potência da cor e da luz, dominando uma espécie de ciência do olhar.
Foi em Paris, depois que viu a primeira mostra de cinéticos da história em 1955, na galeria de Denise René, marchande morta nesta semana, que Cruz-Diez teve o estalo para aplicar uma matriz de movimento a composições que não saem do lugar, mas que se transformam diante dos olhos, parecendo vibrar, flutuar e trocar de cor.
"Fazer com que as pessoas entendessem a cor no espaço me ocupou durante muitos anos", diz Cruz-Diez, 88, em entrevista à Folha, de seu ateliê em Paris. "Estava tentando devolver a vista a uma geração de cegos."
Essa cegueira, ou ilusão de que a cor é algo físico e preso a uma superfície, deve ser diluída em parte agora na megarretrospectiva dedicada a Cruz-Diez que a Pinacoteca do Estado abre neste sábado.
Na mostra, estão telas antigas de Cruz-Diez, exercícios figurativos ainda convencionais, tomando como base naturezas-mortas de Cézanne, além das obras mais ambiciosas, que reinventaram a percepção de cor e movimento.
Mas mesmo na fase inicial, as cores começam a dominar a composição, um cromatismo que se adensa até engolir todas as figuras e virar só cor nas primeiras abstrações que fez com tiras de papelão.
"Sou um artista que esquadrinha como transmitir ao espírito a percepção da cor", afirma Cruz Diez. "Em todas as minhas obras essa cor se faz e se desfaz diante dos olhos, num presente contínuo, sem passado nem futuro, como é sua realidade."
É essa ideia de suspensão, de catarse diante da cor, que Cruz-Diez compara ao impulso de mudança que suas primeiras obras figurativas tentavam expressar. Na visão dele, não são formas puras e vazias as de suas peças, mas abalos físicos e ideológicos.
"Arte é como uma bomba no tempo", resume. "Ela explode quando menos se espera e muda comportamentos que pensávamos imutáveis."
Cruz-Diez libertou a cor de seu plano físico
Artista dominou princípios teóricos para induzir a percepção dos tons
Telas ganham feições diferentes dependendo da luz e da posição em que são observadas pelos espectadores
Carlos Cruz-Diez foi enquadrado a contragosto entre os artistas cinéticos. Sua obra depende do movimento, mas não discute o movimento.
Dependendo do ângulo em que é visto, um quadro pode parecer todo branco, mergulhado em tons quentes ou se resfriar numa paleta glacial.
Isso porque é composto de tiras finíssimas de papelão ou alumínio fixadas na tela, pintadas ou serigrafadas em tons diferentes de cada lado, com maior e menor intensidade em cada uma das pontas.
No fundo, Cruz-Diez passou mais de 60 anos de sua vida tentando libertar as cores de seus suportes físicos.
"Quando criamos a exposição, vimos que sua obra ainda não havia sido entendida", conta Mari Carmen Ramírez, do Museu de Belas Artes de Houston, que organizou a mostra. "Ele não era do grupo cinético, mas se apoiou na matriz cinética para atingir os resultados que queria."
No caso, Cruz-Diez começou alternando dois tons distintos numa superfície de ripas de papelão, criando a ilusão de uma terceira cor. Depois chegou à conclusão de que os efeitos que buscava se resumiam a dois comportamentos básicos das tonalidades diante de olho humano.
ECO NA RETINA
Quase toda a obra de Cruz-Diez toma por base os princípios de cor aditiva e do deslocamento da cor. No primeiro, duas cores justapostas numa composição induzem o olhar a perceber outro tom.
No segundo caso, trechos em branco de um quadro acabam sendo percebidos como coloridos, uma espécie de eco na retina causada pela proximidade das outras cores.
"Essas cores se produzem com o efeito da luz e com o movimento do espectador", diz Ramírez. "Se a cor não existe sobre o suporte, ele a liberta, e ela ganha vida própria. É a passagem da cor de adjetivo a substantivo."
No enorme painel que fez para a Bienal de Veneza em 1970, que está na mostra, Cruz-Diez demonstra esse princípio em larga escala, uma tela que parece inundar a sala num dilúvio de cor.
Depois disso, seus experimentos se tornaram mais radicais. Cruz-Diez se livrou da tela convencional e passou a arquitetar ambientes inteiros mergulhados em cor, situações em que os espectadores caminham por zonas cromáticas intensas, confundindo a ideia de cor na pintura com a realidade da luz no espaço. "É experimentar e absorver a cor na pele", diz Ramírez. "Ele cria experiências quase alucinógenas."