|
junho 21, 2012
Para além do visível... Por Ana Cecília Soares no Scribd
Para além do visível...
Texto de Ana Cecília Soares originalmente publicado em junho de 2012
Bem ali, na minha frente, os dois envolvidos em silêncio iniciavam afluidificação de seus corpos e mentes. Um processo germinal tracejado pelaconfabulação entre performance artística e referências às práticas ritualísticasancestrais
Entremeados por olhares e gestos, eles alteravam a lógica do dito tempo real,conduzindo-nos a uma realidade de sentido cosmológico. Justapondo econfundido eus, excursionando sensibilidades e desconstruindo a nossacapacidade perceptiva de conceber aquele espaço presente.Enquanto ele a adornava com fitas e arava seus pés com terra molhada, batidae encalcada por um dançar próprio de mãos e cabeça, semelhante a um rito depurificação. De outro lado, ela vivia um estado de metamorfose. Parecia umaárvore de raízes largas e flutuantes, algo como uma entidade da natureza. Seusorriso se diluía em sons de chocalhos arrastados pelo corpo em transe.
Essas foram algumas das sensações que tive e, agora, compartilho aovivenciar, como espectadora, a performance, realizada no dia 22 de março, no Centro Cultural Banco do Nordeste em Fortaleza. O trabalho, que teve, na ocasião, a presença da artista visualcearense Sabyne Cavalcanti, faz parte do projeto Perpendicular, idealizadopelo performer e pesquisador Wagner Rossi.De acordo com ele, a ideia planejada antes de chegar a Fortaleza, foi a deconstruir uma aproximação com outros artistas locais por meio de encontrosritualísticos/performáticos, questionando ou propondo um olhar diferenciadopara o que habitualmente chamamos de curador.
“Sou um artista que dialoga com conceitos em arte, e me designar curador desse encontro é uma forma de questionar o que é realmente a função desse ENTE na arte institucionalizada. Qual sua força? Por que o artista necessitadele? Como isso mantém um sistema hierárquico e formatado de arte emercado?”, indaga-se.
É interessante observar a relação que o artista desenvolve entre os termoscurador e curandoria. Etimologicamente, curador vem do latim tutor: aquele quetem uma administração a seu cuidado. Mais do que identificar talentos, saber fazer boas análises, o curador é quem dá sentido a exposição. Situando umalinha de raciocínio entre a poética artística e o nível de compreensão dopúblico. Não tão diferente, o neologismo curandoria nos remete aos conceitos decuidado, zelo e cura. Portanto, ambas as situações implicam num certo sentidode proteção ou acompanhamento referente a algo ou a alguém. Apropriando-sedesses universos, Rossi cria a sua chamada curandoria, onde as imagens docurador e curandeiro se fundem. E o processo curatorial se transforma em umaespécie de ritual mágico.
A partir desse contexto, em consideração a natureza de sua obra, que é a deinteragir energias e ampliar as consciências individual e grupal, Rossi trabalhauma ação de curandoriacom os artistas do encontro. Em cada uma, ele parti de um ponto de convergência, encontro e unicidade que nomeou de PontoCaos/Ponto Origem ou Ponto Pulsão. Em, este “local” consistiu em um desenhogeométrico produzido com fita adesiva fixada no chão. Além disso, o artistabuscou agregar na formulação do trabalho, objetos próximos do universoindígena e da tradição folclórica nordestina: fitas, batata doce, fumo de rolo e aprópria argila, que é um dos principais materiais usado no trabalho da Sabyne. A ação foi pensada especialmente para a artista. E não se tratando de umaperformer, sua postura seria a de receptora. Experimentar a transformação deenergia através dos movimentos de Rossi. Os dois juntos, cada qual com suafunção dentro daquele universo, provocaram aos que ali permaneciaobservando, uma espécie de deslocamento sensorial e estético, instaurandouma relação temporal/espacial desligada de seu caráter comum. A performance, nos propõe demarcar novossentidos. Convertendo o atemporal e o instante fugaz, a um momento do tempopresente. Tornando os corpos dos artistas como focos refletores de novasexperiências. Instrumentos que se pretende afirmar como força viva,possibilidade criativa, ruptura com o que é determinado e esperado.Dessa maneira, contribuindo para a criação de rituais de contato com o própriocorpo e com aquilo que o cerca, dilatando a experiência de percepção doespaço e do tempo. Um processo mágico de aguçar sensibilidades e permitir oolhar ao aparentemente invisível. “O corpo como acontecimento”, diria Wagner Rossi...Tudo isso, bem ali, na minha frente...