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junho 20, 2012
Curadora inglesa identifica diferencial orgânico na arte do Recife por Júlio Cavani, Diário de Pernambuco
Curadora inglesa identifica diferencial orgânico na arte do Recife
Matéria de Júlio Cavani originalmente publicada no Viver do jornal Diário de Pernambuco em 15 de junho de 2012.
Exposição de Daniel Santiago, em cartaz no Mamam, tem curadoria de Cristiana Tejo e Zanna Gilbert, que comenta a experiência em entrevista
Está em cartaz no Recife, no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam), a exposição Do que É que Eu Tenho Medo, retrospectiva panorâmica da obra do artista plástico Daniel Santiago. A mostra tem curadoria da pesquisadora pernambucana Cristiana Tejo em dupla com a inglesa Zanna Gilbert.
A exposição transmite o sentimento de liberdade expressado pelas ideias visuais de Daniel Santiago. Uma das obras, por exemplo, é uma instalação que deve ser penetrada pelo público com óculos 3D.
"O que para mim é muito profundo no trabalho de Daniel é que ele resiste à categorização, como se fosse uma borboleta, ora aqui, ora ali, que é uma provocação a continuar pensando", aponta Zanna Gilbert. A curadora trabalha na Universidade de Essex, na Inglaterra, onde acaba de inaugurar uma exposição sobre elementos de subversão inseridos nas peças gráficas das Olimpíadas do México de 1968. A arte correio, movimento que foi bastante forte no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980, foi um dos temas que a trouxe ao Recife. Trabalhos artísticos postais, inclusive, devem fazer parte de uma sala especial, na galeria Tate Modern, que Zanna deverá ajudar a montar.
LEIA ENTREVISTA COM ZANNA GILBERT:
Como medir a importância internacional de artistas pernambucanos como Daniel Santiago?
É impossível medir a arte! Para mim, a experiência e entendimento que um artista como Daniel Santiago pode trazer às pessoas é muito importante. É inquantificável-singular-irrepetível porque deriva de seu jeito idiossincratico de ver o mundo. Se é assim único, deve ser muito importante! Ele combina performance, literatura, teatro e uma prática experimental que é incomparavel e que contribui a um discurso da arte dos anos 70 em diante.
Você acha que alguns dos trabalhos mostrados na exposição de Daniel Santiago se referem a uma época do passado ou todos também têm efeito sobre a sociedade atual?
Daniel é um artista com um espirito muito vivo e ainda muito ligado ao mundo contemporâneo. A exposição conta com trabalhos atuais como o filme da performance O Velho Ernest Hemingway e o Mar do Recife, feito com Tião e Marcelo Lordello em abril deste ano. A performance consiste no artista vestido elegantemente com terno, gravata e chapéu dando um passeio pela praia de Boa Viagem. Aos poucos caminha para a água e começa a adentrá-la até desaparecer no mar. Outro trabalho realizado especialmente para a exposição é Na Floresta do Alheamento de Fernando Pessoa, executado em colaboração com Eduardo Souza. É uma “floresta” construída com centenas de fitas de voal branco suspensas e iluminadas por lâmpadas azuis e vermelhas. Os visitantes são convidados a entrar usando óculos 3D, que provocam um deslocamento de percepção e um sentimento de estar perdido quando a floresta é penetrada. Os trabalhos de Daniel, seja os mais antigos ou os mais novos, tratam de assuntos persistentes como questões existencias, o assunto de nacionalidade, o meio ambiente, a percepção e a liberdade. Em Poesia Classificada de 1977, por exemplo, ele ativa uma poesia de contemplação que é muito intimo, colocando isso nos classificados do jornal. O texto diz: “Interessa a alguém que numa madrugada de chuva eu fiquei olhando os pingos grossos pela janela da cozinha...e que eu estava com frio de cueca e pé no chão”. Esta poesia nao tem época - é sempre pertinente!
Pra você, qual é o principal tema da arte de Daniel Santiago?
Pessoalmente acho que a liberdade é o tema principal – a liberdade de experimentar, pensar, perceber, fazer, agir, apropriar, colaborar, rir, amar… enfim. É importantíssimo também notar que ele tenta entregar essa liberdade ao outro: não é só para ele. Por isso, ele trabalha com performance e intervenções na cidade. O que para mim é muito profundo no trabalho de Daniel é que ele resiste à categorização, como se fosse uma borboleta, ora aqui, ora ali, que é uma provocação a continuar pensando. Outro aspecto interessante é a estratégia de deslocar a experiência visual, como o utilização de 3D – isso exige as pessoas a questionar o mundo de aparências e utilizar seus outros sentidos.
Você concorda que a história da arte tem sido escrita sob um ponto de vista europeu e norte-americano? Isso começou a mudar?
Claro que na história o ponto de vista ocidental foi exportado e difundido pelo mundo desde o período colonial. A História da Arte faz parte dessa história – o que não fica dentro é "atrasado". Mas tambem existe histórias que já foram escritas e que não entraram na história supostamente mundial. O que começou a mudar é que estas histórias que também fazem parte da história da arte moderna estão sendo ‘incluídas’ no cânone. Este cânone está sendo expandido, só que com os mesmos limites: a expansão só tomará conta da arte que liga com o modernismo. É mais uma globalização que um verdadeiro repensamento das categorias do conhecimento. Para mudar isso, a história da arte teria que ser pensanda com uma outro estrutura.
Você acha que os artistas postais anteciparam fenômenos atuais de uma arte sem local geográfico definido? Aquelas experiências isoladas e clandestinas, que criaram uma rede de fluxos de informação não-material, hoje estão generalizadas no mundo da internet? Ou é diferente?
A ideia de arte fora das fronteiras nacionais parece ser muito ligada à internet e a um mundo alto-conetado. Mas, antes disso, os artistas postais ja criaram uma rede internacional que permitiu a troca de ideia e a circulação de informação, às vezes com conteúdo politico. A importância do conceito (arte conceitual) liberou este tipo da prática em que o objeto é um veiculo e não uma mercadoria . Tem coisas em comum mas sim há uma diferença que às vezes é contraditória: a materialidade. O objeto artesanal também foi importante para confirmar uma esfera humana. Também a distância percorrida é importante e evidente na arte correio, e talvez o sentido do local foi mais forte naquele época, mesmo que os artistas intercambiaram querendo ultrapassar fronteiras.
Como será a sala especial que você ajudará a montar na galeria Tate?
A ideia é começar com alguns artistas que ligam com circulação alternativa. Como tenho um interesse na rede de arte correio e regimes opressivos, começamos com as artistas que pesquisei do Brasil, Argentina e México. A ideia é construir uma história a partir dessa perspectiva, invertindo a relação mais comum … ou seja, em vez de ‘incluir’ artistas de America Latina num Cânone já estabelicido vamos começar com artistas de latino-america e ‘incluir’ artistas mais conhecidos, como On Kawara e Ray Johnson. Esta estratégia tambem não aceita uma categorização puramente ou principalmente geográfica. Entretanto, ainda não sabemos se vai acontecer ou não!
Como você se aproximou do Recife?
Li um artigo sobre o trabalho de Paulo Bruscky, fiquei interesada e decidi fazer meu doutorado sobre arte correio. Um ano depois, em 2010, recebi uma bolsa para vir pesquisar no atelier de Bruscky. Visitei Daniel Santiago várias vezes também. Durante a mesma visita conheci Cristiana Tejo e os artistas Cristiano Lenhardt, Jonathas de Andrade e a arquiteta Cristina Gouvea. Foi um período incrível e começei a ficar muito apaixonada pela cidade. Notei que a cena da arte daqui é diferente das cidades mais grandes, que é muito forte e ao mesmo tempo bastante ‘familiar’ e que as coisas funcionam de um jeito diferente, talvez mais orgânico. Gostei muito disso e resolvi tentar voltar logo. Só que demorei dois anos. Esta segunda visita foi mais incrível ainda por causa de trabalhar com Daniel, alguns artistas mais jovens e com a curadora Cristiana Tejo. Trabalhar com um artista como Daniel é uma aprendizagem especial.
O que levou você a estudar o design nos Jogos Olímpicos do México de 1968?
Foi uma conversa com a diretora da galeria onde trabalho como curadora na Universidade de Essex. Ela queria fazer uma exposição para marcar os Jogos Olímpicos em Londres este ano. Achei muito interessante que os estudantes se apropriaram do desenho gráfico oficial do Mexico ‘68 para levar a atenção do mundo à situação repressiva no Mexico naquela época. Abrimos a exposição Jogos Contestidos: A Gráfica Revolutionária de Mexico 68. O desenho oficial foi impresionante e poderoso, uma combinação de Op art international e tecelagem geométrica dos índios Huichol. A ideia era pensar como que é o intervalo entre a imagem oficial do país durante as Olimpíadas e a experiência cotidiana num momento de um outro tipo de crise, que é a crise de capitalismo na Europa.