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junho 6, 2012
A artista Maria Thereza Alves será uma das quatro brasileiras na Documenta de Kassel por Audrey Furlaneto, O Globo
A artista Maria Thereza Alves será uma das quatro brasileiras na Documenta de Kassel
Matéria de Audrey Furlaneto originalmente publicada no caderno de cultura do jornal O Globo em 6 de junho de 2012.
Consagrada mundialmente mas quase desconhecida por aqui, artista participa de uma das maiores exposições de artes visuais do mundo
Documenta 13, Kassel, Alemanha - 09/06/2012 a 16/09/2012
A dOCUMENTA (13) no Canal Contemporâneo
RIO - Maria Thereza Alves vasculhou subsolos na Inglaterra em busca de sementes ancestrais, criou um dicionário para salvar o idioma de uma etnia indígena brasileira quase extinta e fez mulheres francesas posarem nuas em retratos que lembram pinturas do século XIX. As obras decorrentes de suas pesquisas, misto de antropologia, política e arte, já foram expostas em importantes mostras, como a Manifesta (a bienal de arte contemporânea da Europa), as bienais de Praga, Lyon, Atenas e Havana, a Trienal de Guangzhou, na China, e em renomadas instituições, como o New Museum, em Nova York, e o Palais de Tokyo, em Paris. A brasileira, porém, teve seus trabalhos expostos no Brasil apenas uma vez, durante a 29 Bienal de São Paulo, em 2010.
Aos 51 anos, ela será anunciada nesta quarta, na Alemanha, como uma das quatro artistas que vão representar o país na Documenta de Kassel, uma das maiores e mais respeitadas exposições de artes visuais no mundo, que ocorre a cada cinco anos na Alemanha e que será aberta ao público no sábado. Maria Thereza figura ao lado de Renata Lucas, Anna Maria Maiolino e Maria Martins (1894-1973), estas com longa lista de exposições no Brasil.
Lobista nos EUA e fundadora do PV no Brasil
O fato de ser pouco conhecida em seu país de origem pode ser reflexo de a artista paulistana viver há 15 anos na Europa, com residência entre Berlim e Roma. Maria Thereza, porém, defende que a questão é histórica: quando começou a desenvolver os primeiros trabalhos, nos anos 1980, fotografando comunidades em situações miseráveis para a série "Brazilian recipes", não havia no Brasil "espaço para vozes que não estavam economicamente bem".
— Não havia lugar para pessoas como eu. Eu não tinha o sobrenome correto — diz, referindo-se à sua origem simples, de família rural, vinda do interior dos estados do Paraná e de São Paulo. — Quando terminei a faculdade de Belas Artes (nos Estados Unidos), tentei mostrar meu trabalho no Brasil e, muitas vezes, perguntavam meu sobrenome. Eu não entendia, era nova, não tinha essa sabedoria. Perguntavam: "De que família Alves você é?" E eu pensava: "Por quê? Estou mostrando meu portfólio..." Até descobrir que queriam saber se eu vinha de uma família importante, porque havia outra família Alves importante. Quando o Brasil parar de fazer esse tipo de pergunta (sobre status) e pensar que todas as pessoas podem participar da sociedade, o país poderá ser mais interessante.
O tom político acompanha sua produção. Ela diz não ter autorização para divulgar o que vai apresentar na Documenta, mas adianta que vem estudando Chalco, região central do México. Seu projeto é construir uma ilha — sim, uma ilha real — nos moldes da que existiu séculos atrás naquela região e que, em decorrência da urbanização, foi soterrada. A obra é "sobre a possibilidade, a energia de transformação". O produto é o projeto da ilha e o diálogo com os povos indígenas locais.
A ligação de Maria Thereza com tribos está na origem da carreira da artista que, ainda criança, mudou-se para os Estados Unidos (o pai temia problemas por ser sindicalizado em tempos de ditadura). Lá, nos anos 1970, ela fazia lobby contra o tratamento que o governo brasileiro dava aos índios. Foi assim que conheceu o marido, Jimmie Durham, índio cherokee americano, artista e ativista. As ações políticas do casal se mesclam às obras de arte que criam, ora sozinhos, ora em dupla. Na Bienal de São Paulo, por exemplo, ela apresentou um dicionário em que traduzia para o português o dialeto krenak, etnia indígena quase dizimada. Já Durham analisava a elite paulistana, reunindo objetos de valor numa vitrine.
Para Moacir dos Anjos, curador que esteve à frente da 29 Bienal e que trouxe a artista e seu marido ao país, "há certo recalque no Brasil com relação à cultura indígena", e o trabalho de Maria Thereza "abre fissuras no contrato social".
— Ela é uma das poucas artistas que trabalham com a questão indígena no país — afirma o curador. — No Brasil, existe esse recalque e talvez por isso o trabalho de Maria Thereza passe ao largo do interesse dos curadores e das instituições.
Ela afirma que não vê outro caminho para transformações que não o da política ("Para mim, tudo é política, relação de pessoas na sociedade", diz). No fim dos anos 1980, de volta ao Brasil depois da juventude nos Estados Unidos, ela deixou o Partido dos Trabalhadores (PT) e ajudou a fundar o Partido Verde (PV). Pouco depois, frustrada com as dificuldades de transformações na "colonizada sociedade brasileira", mudou-se para a Europa.
‘Me interessa a história como parte de hoje’
No âmbito da arte política de Maria Thereza entram ações para decifrar costumes e convenções sociais. Com Durham, ela assinou o vídeo "Male display among European population" para a Manifesta de 2008, em que tentavam descobrir o motivo pelo qual homens têm o hábito de, diz ela, "tocar os testículos em público".
— Estou interessada em como acreditamos que somos e em como somos realmente. Como a gente pensa que o normal é normal? Me interessa a história como parte de hoje.
Para uma de suas obras mais recentes, "Beyond the painting" (2011), exposta no Museu de História de Nantes, na França, estudou como a mulher é retratata na arte, desde o século XVII — então, a figura feminina aparecia "vigorosa e forte"; já no século XIX, surgia "alongada e sem energia". Convidou francesas para repetir, nuas, as poses dos retratos, mas sempre fortes, com os olhos cravados no espectador. Em outro trabalho, buscou, no subsolo de áreas portuárias da Inglaterra, sementes dormentes trazidas de outros continentes por antigas embarcações. "Seeds of change" (2005) resultou numa instalação em que, germinadas, as sementes revelam plantas exóticas.
A artista diz que quer voltar ao Brasil para um longo projeto e conta que tem comprado livros para saber mais sobre o país. Afirma, no entanto, estar distante da "síndrome do exilado, que deseja sempre voltar". Daí o mergulho em culturas diversas para criar suas obras.
— Tenho que estar onde estou — diz a artista. — Quero saber exatamente meu lugar no mundo.
Documenta 13, Kassel, Alemanha - 09/06/2012 a 16/09/2012