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abril 30, 2012
As invasões construtivas do UX por Jon Lackman, Folha de S. Paulo
As invasões construtivas do UX
Matéria opor Jon Lackman originalmente publicada no caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo em 29 de abril de 2012.
Há 30 anos, na calada da noite, um grupo de adolescentes parisienses realizou uma invasão fora de série. Reuniram-se num café perto da Torre Eiffel para repassar os planos pela última vez. Abrindo a tampa de um bueiro, desceram pela escada e chegaram a um túnel de concreto por onde passava um cabo que avançava pela escuridão.
Seguiram o cabo até a fonte: o subsolo do edifício do Ministério das Telecomunicações. Uma grade horizontal bloqueava o caminho, mas eles eram magrinhos, conseguiram passar e subiram ao térreo. Na central da segurança, encontraram três molhos de chaves e um livro de ponto que indicava quais guardas estavam em serviço.
Mas não havia guardas à vista. Os invasores vasculharam o prédio por horas, sem encontrar ninguém, até que, num fundo de gaveta, viram o que estavam buscando: os mapas da rede urbana de túneis do ministério.
Copiaram os mapas e devolveram as chaves. Abriram a porta da frente: nada de policiais, nada de transeuntes. Saíram por uma deserta Avenue de Ségur e caminharam para casa, ao raiar do dia.
A aventura clandestina não foi um roubo nem um ato de espionagem, mas uma operação crucial para a associação que ficaria conhecida como UX, ou Urban eXperiment. O UX é uma espécie de coletivo de artistas, mas está longe de ser um grupo de vanguarda, que força o público a confrontar o novo; seu único público é o próprio grupo. Além disso, o coletivo volta e meia se mostra radicalmente conservador, imoderado em sua devoção ao antigo.
Com meticulosas infiltrações, membros do UX executaram incríveis atos de preservação e reparo cultural, no espírito de "manter as partes do nosso patrimônio que o governo abandonou ou não consegue manter". O grupo diz ter feito 15 restaurações clandestinas em Paris, muitas em locais seculares.
O que tornou isso possível foi seu domínio progressivo, ao longo de 30 anos, da rede de passagens subterrâneas --centenas de quilômetros de túneis de telecomunicação, energia, água, esgoto, catacumbas, metrô e minas centenárias.
Feito hackers que invadem redes digitais e controlam máquinas importantes, os membros do UX executam missões clandestinas em todos os túneis e espaços subterrâneos de Paris, supostamente protegidos. Eles os utilizam para chegar a sítios de restauração e já realizaram festivais de cinema nos porões de prédios desocupados.
RELÓGIO
A travessura mais espetacular da UX aconteceu em 2006. Um grupo dedicou meses a se infiltrar no Panthéon, a grandiosa construção que abriga os restos mortais de personagens centrais da história e da cultura da França.
Oito membros montaram uma oficina secreta numa sala, com fiação elétrica e de internet, cadeiras, ferramentas, geladeira e fogareiro. Por um ano, restauraram o relógio do Panthéon, instalado no século 19 e enguiçado desde os anos 60. Os moradores do bairro devem ter tomado um susto ao ouvir, pela primeira vez em décadas, o carrilhão tocando a cada 15 minutos.
Há oito anos, o governo francês nem sabia que o UX existia. Quando as aventuras do grupo começaram a sair na imprensa, seus membros chegaram a ser retratados como marginais e até como potencial inspiração para terroristas. Mas há autoridades que não conseguem esconder sua admiração. Ao ouvir o nome UX, Sylvie Gautron, da polícia de Paris --cuja tarefa é vigiar as antigas pedreiras--, abre um largo sorriso.
O grupo se refere à cidade como a tela para sua obra; seus membros alegam ter acesso a todos os edifícios do governo, a todos os estreitos túneis de telecomunicações. Será que Sylvie acredita nisso? "Talvez", ela diz. "Tudo o que eles fazem é muito intenso".
Não é tão difícil assim roubar um Picasso, diz Lazar Kunstmann. Pioneiro e porta-voz extraoficial do UX, Kunstmann --quase certamente um pseudônimo de super-herói, pois significa "Homem-Arte" em alemão-- se veste de preto, é calvo, quarentão, caloroso, divertido.
Estamos na sala dos fundos de um café frequentado por universitários, bebendo expressos e discutindo o espetacular roubo de € 100 milhões em quadros, em 2010, no Museu Municipal de Arte Moderna em Paris. Ele contesta a alegação de um porta-voz da polícia, segundo o qual o roubo foi uma operação sofisticada.
De acordo com artigo publicado pelo jornal "Le Monde", um sujeito trabalhando sozinho removeu os parafusos de uma moldura de janela, às 3h50, cortou um cadeado em um portão e pôde se deslocar livremente pelas galerias, roubando quadros de Léger, Braque, Matisse, Modigliani e Picasso (uma obra de cada).
"O ladrão estava perfeitamente informado", disse o policial ao jornal. Se não soubesse que a janela contava com um detector de vibrações, teria simplesmente quebrado o vidro. Se não soubesse que o alarme e parte do sistema de segurança estavam quebrados, não teria caminhado pelo museu. Se não conhecesse o horário das rondas noturnas, não teria chegado no meio do período mais quieto.
Para ele, o caso ilustra os principais problemas da civilização atual --fatalismo, complacência, ignorância, bairrismo e negligência.
As autoridades, ele diz, só se esforçam para proteger o patrimônio amado pelas multidões, como o Museu do Louvre. Locais menos conhecidos são negligenciados e, caso não sejam abertos ao público, se deterioram, ainda que o único reparo necessário fosse consertar um vazamento por € 200. O UX cuida das ovelhas negras, dos locais desdenhados, dos artefatos esquecidos pela civilização.
LADRÃO SÉRIO
Impressionante, não? Não, diz Kunstmann. "Ele sabia que nada estava funcionando", suspira Kunstmann, que conhece muito bem a precariedade do sistema de segurança do museu. "Um monte de grafiteiros, moradores de rua e usuários de crack se concentram na região em torno do museu", diz. Isso facilitaria para o ladrão se aproximar e observar as janelas discretamente durante toda a noite, determinando os horários de ronda dos seguranças.
Um ladrão sério, continua Kunstmann, teria adotado abordagem completamente diferente. No mesmo edifício, uma grandiosa e vasta estrutura conhecida como Palais de Tokyo, há um restaurante que fica aberto até a meia-noite. Um ladrão inteligente poderia pedir um café no restaurante e depois sair vagueando pelo edifício.
"Muitas das coisas têm alarmes, mas quando você tenta acioná-los, eles não funcionam!", diz Kunstmann. "Por quê? Porque são desligados às 2h". (O museu alega que seu sistema de alarme funciona 24 horas por dia.)
Além disso, existem porções inteiras feitas de gesso na parede que separa o museu do restante do edifício. "Basta..." Kunstmann faz o movimento de um soco com o punho. "Se o sujeito fosse profissional, é isso que teria feito".
O UX fez um estudo sobre a segurança do museu, dada sua preocupação com os vulneráveis tesouros de Paris --nem sempre compartilhada pelas grandes instituições culturais da cidade.
Uma vez, depois que uma integrante do UX descobriu severas falhas de segurança em um grande museu, ela escreveu um memorando revelando todos os problemas e deixou o documento na mesa do diretor de segurança, em plena madrugada. Em lugar de resolver os problemas, o diretor foi à polícia e exigiu que os responsáveis fossem investigados. (A polícia não aceitou a queixa, ainda que tenha enviado um recado ao UX pedindo que moderasse suas ações.)
Kunstmann tem certeza de que nada mudou desde o roubo no Museu Municipal de Arte Moderna; a segurança continua ineficiente como sempre, diz.
SIGILO
É difícil, porém, relatar a extensão desse trabalho voluntário e clandestino. O grupo preza o sigilo, e seus feitos conhecidos só foram revelados por acidente.
O público ficou sabendo dos festivais de cinema subterrâneos quando a ex-namorada de um integrante, magoada, fez uma denúncia à polícia. Repórteres só descobriram a restauração no Panthéon porque membros do UX se enganaram ao supor que seria seguro chamar o diretor do prédio para assumir a manutenção de rotina do relógio restaurado.
Com base nos interesses de seus membros, o UX montou uma rede de células, com subgrupos especializados em cartografia, infiltração, túneis, alvenaria, comunicação interna, arquivos, restauração e programação cultural.
Os cerca de cem integrantes são livres para mudar de função e têm acesso a todas as ferramentas de que o grupo dispõe. Não há manifesto, carta, estatutos --exceto a obrigação de preservar o sigilo. A adesão é reservada a convidados; quando um integrante descobre alguém que já esteja envolvido no tipo de atividade que o UX promove, aborda a pessoa e discute uma possível união de forças. Embora o grupo não cobre taxa de adesão, os membros dão contribuições em dinheiro para os projetos.
A primeira experiência do UX, em setembro de 1981, foi acidental. Um estudante de ensino médio, Andrei, tentava impressionar dois colegas mais velhos, afirmando que ele e seu amigo Peter conseguiam entrar em lugares proibidos e que estavam prontos para tentar o Panthéon, uma imensa igreja no 5ème arrondissement (divisão administrativa parisiense).
Andrei contou tanta vantagem que, para não dar vexame, teve de cumprir a promessa --e foi com os novos amigos. Esconderam-se no prédio até anoitecer. A ocupação provou ser facílima --não havia guardas nem alarmes--, e a experiência os eletrizou. Passaram a imaginar o que mais poderiam fazer.
Kunstmann, colega de Andrei e Peter, foi um dos primeiros membros do UX. O grupo logo expandiu as atividades ao obter os mapas dos túneis do Ministério das Telecomunicações e de outras fontes.
Muitos prédios parisienses estão interligados por passagens nos porões, tão desprotegidas quanto os túneis. A maioria das autoridades, diz Kunstmann, age como se acreditasse num princípio absurdo: ir aos túneis é proibido, portanto ninguém vai lá. Isso, ironiza ele, "é uma conclusão irretocável --e, além disso, prática, pois, já que as pessoas não usam os túneis, é só trancar as entradas".
Só quando estive nos túneis --algo ilegal e passível de multa de até € 60 (R$ 150), embora raros sejam pegos-- entendi a complacência das autoridades. Achar uma entrada destrancada, sem o know-how do UX, levou 45 minutos de caminhada a partir do metrô. O UX tem acesso a túneis secos e espaçosos, mas os mais fáceis de entrar, que percorri, são estreitos e meio alagados. Quando voltei à entrada, estava exausto, imundo e todo arranhado.
FESTIVAL
Numa típica noite de festival subterrâneo, integrantes do grupo exibem pelo menos dois filmes que tenham alguma conexão, não óbvia, mas instigante. Não explicam a conexão e deixam à plateia a tarefa de descobri-la.
Durante um verão, o grupo organizou um festival de cinema dedicado a "desertos urbanos" --os espaços esquecidos e subutilizados de uma cidade. Decidiram, naturalmente, que o lugar ideal para um festival como esse seria um dos espaços de que o evento tratava. Escolheram uma sala sob o Palais de Chaillot, que conheciam fazia muito tempo e à qual tinham acesso ilimitado.
O edifício abrigava então a famosa Cinemathèque Française, o que tornava a sala duplamente apropriada. Montaram um bar, uma sala de jantar, espaços de convivência e uma sala de exibição para 20 espectadores; por anos a fio, realizaram festivais lá todo verão. "Os cinemas de bairro deviam ser assim", diz Kunstmann.
PANTHÉON
A restauração do relógio do Panthéon foi executada por um subgrupo do UX, conhecido como Untergunther, que se dedica ao restauro. O Panthéon era uma escolha especial: foi lá que o UX começou e, ao longo dos anos, exibiu filmes, realizou exposições de arte e encenou peças.
Num desses eventos, em 2005, Jean-Baptiste Viot, fundador do UX e um dos poucos a revelar seu nome real, decidiu observar de perto o relógio Wagner do edifício, uma maravilha da engenharia instalada no século 19, em substituição ao antigo (o Panthéon tinha relógio já em 1790).
Viot admirava o Wagner desde a sua primeira visita. Nos anos seguintes, tornou-se relojoeiro profissional, empregado da Breguet, fabricante de relógios de luxo. Em 2005, Viot convenceu sete integrantes do grupo a se unirem a ele na restauração do relógio.
O projeto estava em discussão havia anos, mas de repente se tornou urgente. A ferrugem era tanta que logo seria impossível consertar o mecanismo sem recriar, em vez de restaurar, cada peça. "Não seria uma restauração, mas uma réplica", diz Kunstmann.
Quando o projeto começou, ganhou significado quase místico para a equipe. Paris, tal como a viam, era o centro da civilização francesa e tinha sido, um dia, o centro da civilização ocidental. O Quartier Latin era o centro histórico da intelectualidade francesa. O Panthéon fica no Quartier Latin e é dedicado aos grandes nomes da história do país. E lá dentro havia um relógio que batia como um coração até subitamente silenciar. Os oito membros do Untergunther queriam ressuscitar o coração do mundo. Passaram a dedicar todo o seu tempo livre ao projeto.
Primeiro montaram uma oficina no alto do edifício, logo abaixo do domo, num piso ao qual ninguém ia (nem mesmo seguranças) --uma espécie de "espaço flutuante", como o descreve Kunstmann, iluminado por fendas nas paredes.
"De lá, podíamos contemplar Paris de uma altura de 15 andares. Do lado de fora, tem cara de disco voador; de dentro, parece uma casamata", lembra Kunstmann. A oficina foi equipada com oito cadeiras, mesa, estantes, frigobar e cortinas de veludo vermelho, para ajudar a controlar a temperatura. "Todos os itens foram concebidos para serem dobrados e guardados em caixotes de madeira como os que estão espalhados por toda parte do monumento", diz.
Na calada da noite, eles galgavam escadarias, levando madeira, brocas, serras, ferramentas de relojoaria. Modernizaram a fiação elétrica do espaço. Gastaram € 4.000 (cerca de R$ 9.940) em materiais, pagos por eles mesmos. No terraço, criaram um pomar.
A segurança do Panthéon era precária. "Ninguém, nem policiais nem transeuntes, se incomodava com gente entrando ou saindo do pela porta da frente do Panthéon", diz Kunstmann. Mesmo assim, os oito se equiparam com crachás falsificados, com fotos, chip, holograma com o perfil do monumento e um código de barras "totalmente inútil, mas impressionante", diz Kunstmann.
Era raro que um dos seguranças que se encontrava com eles fizesse perguntas. Na pior das hipóteses, o diálogo transcorria assim:
"Vocês estão trabalhando à noite? Posso ver seus crachás?"
"Aqui estão".
"Tudo bem, obrigado".
SABOTAGEM
Quando a oficina estava pronta e limpa, começaram a trabalhar. O primeiro passo era entender por que o relógio havia se deteriorado àquele ponto --"uma espécie de autópsia", diz Kunstmann. Parecia sabotagem. Aparentemente, um funcionário do Panthéon, cansado da obrigação de dar corda uma vez por semana, destruíra uma engrenagem com uma barra de ferro.
Levaram a máquina para a oficina. Viot ensinou os colegas a consertar relógios. Primeiro, limpavam cada peça com "banho de relojoeiro". Primeiro, três litros de água obtidos nos banheiros do primeiro piso. A isso acrescentavam 500 gramas de sabão solúvel, 250 ml de amônia e uma colher de sopa de ácido oxálico --misturados e aquecidos a 140 graus centígrados. Com a solução, o grupo lixava e polia cada superfície.
Depois, repararam o gabinete de vidro do mecanismo, substituíram as polias e cabos quebrados e recriaram do zero a engrenagem sabotada (a roda de escape, roda dentada que administra a rotação do relógio), bem como peças desaparecidas, como o pêndulo.
Ao terminar o trabalho, no terceiro trimestre de 2006, o UX informou ao Panthéon o sucesso da operação. O grupo imaginava que a administração assumiria o crédito pela restauração e a responsabilidade pela manutenção. Avisaram o diretor, Bernard Jeannot, por telefone, e se ofereceram para dar os detalhes em um encontro. Quatro integrantes do grupo foram, entre eles Kunstmann e a líder do grupo, uma fotógrafa de seus 40 anos.
Ficaram atônitos quando Jeannot se recusou a acreditar na história. Chocaram-se ainda mais porque, depois de lhe mostrarem a oficina ("Acho que preciso me sentar", ele murmurou), a administração decidiu processar o UX, pedindo a pena de um ano de prisão e multa de € 43,8 mil (R$ 109 mil).
Pascal Monnet, então assistente de Jeannot e hoje diretor da casa, contratou um relojoeiro para desfazer a restauração, sabotando o relógio de novo. Mas o relojoeiro se recusou a fazer mais que desconectar a roda de escape, originalmente sabotada. O UX voltou a invadir o edifício para remover a peça e guardá-la, na esperança de que uma futura gestão mais esclarecida a quisesse de volta.
O governo saiu derrotado no processo. Abriu um segundo e também perdeu. Ao que parece, não existe na França uma lei contra melhorar relógios. No tribunal, uma promotora definiu como "estúpidas" as acusações de seu próprio governo contra o UX. Mas o relógio continua parado, com os ponteiros congelados às 10h51.
NARCISISMO
Os membros do UX não são guerrilheiros, subversivos, combatentes pela liberdade nem rebeldes, muito menos terroristas. Não consertaram o relógio para causar embaraços ao Estado nem sonham em derrubar o governo. Tudo o que fazem é para seu próprio consumo; se podem ser acusados de algo, é de narcisismo.
O grupo tem parte da culpa pela incompreensão sobre seu trabalho. Os integrantes reconhecem que a maioria de seus contatos com o mundo externo serve para despistar autoridades e intrometidos. Tentam se esconder na massa de parisienses que penetra os subterrâneos da cidade para passeios turísticos ou festas.
O que os atrai nesses lugares? Kunstmann responde a essa pergunta com outras: "Você tem plantas em casa?", questiona, impaciente. "Rega todo dia? Por quê?" Porque, ele responde, "de outra forma elas não passam de coisas feias e mortas". É por isso que esses símbolos culturais esquecidos são importantes --"porque temos acesso a eles, os vemos".
O objetivo, diz, não é necessariamente fazer com que essas coisas voltem a funcionar. "Se restauramos um abrigo contra bombas, certamente não esperamos novos bombardeios para que as pessoas possam usá-lo. Se restauramos uma estação de metrô do começo do século 20, não pensamos que a Electricité de France vá nos pedir para converter a energia de 200 mil para 20 mil volts. Só queremos que tudo fique o mais perto possível de um estado funcional".
O UX tem um motivo simples para manter sigilo sobre os locais, mesmo depois de restaurá-los. O mesmo anonimato que os privou de cuidados "paradoxalmente os protegerá mais tarde" de saques e grafiteiros, diz Kunstmann. O grupo sabe que não conseguirá chegar à maioria de locais que precisam de restauração. Mas, "a despeito disso, o conhecimento de que alguns deles, mesmo uma pequena fração, não desaparecerá porque conseguimos restaurá-los é fonte de extrema satisfação".
Peço que ele se estenda mais sobre a escolha de projetos do grupo. "Não podemos falar muito", responde, "porque, se descrevermos os locais, mesmo que vagamente, podemos revelar onde ficam".
Um dos locais "é subterrâneo, no sul de Paris, não longe daqui. Foi descoberto há pouco, mas atraiu forte interesse. Contradiz a história do edifício que fica sobre ele. É história em reverso, de certa forma; o local se destinava a uma atividade, há certas estruturas lá, mas na realidade ele já realizava essa atividade muito tempo atrás".
Caminhando pelo Quartier Latin em uma noite amena, tento imaginar o que Kunstmann descreve e a cidade se transforma diante dos meus olhos e sob meus pés. Será que falsários operavam do porão da Casa da Moeda parisiense? A igreja de Saint-Sulpice foi construída no terreno de um templo pagão? Subitamente, a cidade toda parece repleta de possibilidades. Cada fechadura é um olho mágico, cada túnel é uma passagem, cada edifício às escuras, um teatro.
Mas também fica claro que o UX mantém seu amor por sua primeira tela, o Panthéon. Para fechar este artigo, uma colega precisava verificar uma questão junto a Kunstmann. Ele respondeu que ela podia ligar "a qualquer hora", e ela o fez, ainda que fosse 1h em Paris.
Ele atendeu ofegante e disse que estava carregando um sofá. Ela fez a pergunta: quando o relógio foi paralisado, depois da restauração, que hora seu mostrador marcava? Kunstmann estava no Panthéon. "Pera aí", disse. "Vou verificar."
Tradução de PAULO MIGLIACCI.