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abril 3, 2012
Um tom cosmopolita na arte brasileira, Valor Econômico
Um tom cosmopolita na arte brasileira
Matéria originalmente publicada na Valor econômico em 9 de março de 2012.
Curador-chefe da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Ivo Mesquita é um dos nomes centrais no processo de internacionalização da arte brasileira. Ao lado de curadores como Paulo Herkenhoff e Adriano Pedrosa, Mesquita faz parte de um grupo que respondeu à demanda estrangeira por profissionais latino-americanos no boom desse segmento, no começo da década de 1990 - durante 11 anos, ele foi professor do Bard College (Nova York), no programa de formação de curadores. Acompanhando nomes hoje inseridos mundialmente, como Beatriz Milhazes e Iran do Espírito Santo, Mesquita passou por algumas das principais instituições de arte no Brasil, como a Bienal de SP, onde foi curador da 28ª edição, e o Museu de Arte Moderna de São Paulo, onde trabalhou como diretor-artístico. A experiência lhe permite ver, dentro do contexto, a arte brasileira contemporânea.
Valor: Em leilões internacionais de arte latino-americana não é mais raridade ver obras de artistas brasileiros vivos chegarem a US$ 1 milhão. Até 2008, quando Beatriz Milhazes atingiu essa marca, no entanto, isso era impensável. Quais fatores permitiram esse cenário?
Ivo Mesquita: A arte brasileira entrou no mercado internacional com a globalização, mas sob a rubrica "latino-americana". Os estudos culturais, os textos dos catálogos de exposições dessa época, virada dos 1980 para os 1990, têm muito disso. Os brasileiros ficavam cabreiros, houve resistências a esse discurso que os levou para lá. Aqui, não é algo claro, não nos damos conta de que somos latino-americanos. O Ernesto Neto, por exemplo. O que chamava a atenção deles eram os cheiros, a sensualidade do Brasil, aquelas coisas fálicas enormes. Com a Beatriz Milhazes e a Leda Catunda, eram as cores; com o Vik Muniz, o tom irônico. Essa arte ganha legitimidade culturalista, que é o tom dos anos 1990. É o Brasil brasileiro, inescapável. Os pesquisadores estrangeiros relacionaram essa geração com os artistas dos anos 1960 e 1970, Hélio Oiticica e Lygia Clark, e descobrem nomes consistentes. Reparam que há articulações com arquitetura, teatro, cinema e música, e então entende-se que havia algo cosmopolita.
Valor: Mas de onde veio o interesse estrangeiro por essa cultura "latino-americana"?
Mesquita: Havia uma demanda. Os EUA sempre querem explicar, colocar todos numa caixinha: "Você é o branco do olho puxado", "Você é o negro do cabelo vermelho" etc., e nós sempre fomos os latino-americanos. Quando você fala "african american", você diz que ele é meio americano. Haveria, então, um "only american". Então tem essas gradações. O politicamente correto ensinou a eles que não dava para ficar escutando só o que os professores americanos falavam. É questão de geopolítica, política cultural. Naquela época, nem se cogitava fazer exposição só com brasileiros. Pareceria extremamente provinciano e politicamente incorreto.
Valor: Em que momento os brasileiros começaram a ganhar individualidade dentro desse "pacote" latino-americano?
Mesquita: Os EUA continuam tratando o Brasil junto com o México, a Colômbia etc. Mas, do ponto de vista das feiras e do colecionismo, os departamentos de arte latino-americana de museus como MoMa e Tate estão comprando mais arte brasileira. Se você olhar nos leilões, vai reparar que brasileiros atingem preços cada vez mais altos. Várias coisas juntas explicam isso. Tem o momento econômico atual do Brasil, que gera uma curiosidade enorme. Temos uma das produções mais cosmopolitas da região. Os argentinos estão juntos com a gente nisso.
Valor: A produção brasileira tem, então, um traço estético específico?
Mesquita: Nossa origem segue o modelo da Academia Imperial de Belas Artes, que é francesa. Toda a representação do Brasil no século XIX, feita pelos artistas brasileiros, é uma representação idílica, de tradição europeia. O modernismo brasileiro fala de forjar nossa identidade. O tema é nacional, mas a linguagem não é. Quando chegam os anos 1950, há uma predisposição do Brasil em entrar no processo de desenvolvimento e internacionalização. Nesse contexto se dá o surgimento de organizações como o MASP, o MAM, a Bienal. É nos anos 1950 que há um salto e a arte brasileira ganha singularidade, com os concretos e neoconcretos. Tudo é riquíssimo daí para frente, com os artistas entrando em outro circuito. Hoje, existem vários polos de produção: Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Vitória, Belém. Tudo está mais descentralizado no país, o que é positivo.
Valor: Quais são os personagens de destaque nesse longo processo que desembocou na valorização dos contemporâneos?
Mesquita: A [francesa] Catherine David, pesquisadora apaixonada pelo Brasil, e Guy Brett [crítico e curador britânico que, já nos anos 1960, apoiou nomes como Hélio Oiticica] foram fundamentais. É importantíssima também a Coleção Cisneros [da venezuelana Patrícia de Cisneros, maior colecionadora de arte latino-americana], a partir dos anos 1990. As galerias brasileiras cooperaram, fizeram um bom trabalho de colocar obras em coleções importantes. Não basta vender. É necessário fazer parcerias com galerias estrangeiras, divulgar, fazer representações. No campo das galerias, esse trabalho foi inaugurado pelo Marcantônio Vilaça (1962-2000). Um terceiro elemento importante foi a Bienal de SP, com seus eternos altos e baixos. Porque a Bienal virou parada obrigatória no circuito. O boom de agora, que já existia lá atrás, tem a ver com o modo como cada país latino-americano no final dos anos 1980 resolveu seus problemas com suas ditaduras.
Valor: Existe um projeto de país no atual processo de internacionalização da arte?
Mesquita: Nos anos 1950, mais que uma articulação geral política e social no Brasil pelo seu desenvolvimento, havia um "zeitgeist" em que todos tinham um projeto de país. Chateaubriand e Ciccillo Matarazzo podiam ter seus defeitos, mas acreditavam que se existissem museus, arte, teatro, música, cinema etc., o país ficaria melhor. Hoje, a despeito de trabalhos maravilhosos pelo Brasil afora na área da educação e formação profissional, o circuito de artes plásticas está muito marcado pelo business, pelo marketing, pelas agendas, números e metas, muito "Eu, eu, eu". Não tem essa coisa de um projeto nacional, de consolidação do país.
Valor: Podemos falar que os resultados foram reflexo direto de iniciativas pontuais?
Mesquita: Esse processo veio de uma demanda exterior, pois está associada à crescente presença de uma população de origem latino-americana na Europa e nos EUA. As primeiras grandes conferências sobre essa arte tentavam organizar a história, as referências e a produção artística do continente para constituir programas universitários, de exposições, de pesquisas que consolidassem essa categoria. Daí o crescente número de exposições e intercâmbio cultural a partir da segunda metade dos anos 1980, que levaram uma grande quantidade de arte latino-americana para o hemisfério norte. Quase todos esses projetos buscaram recursos e apoio para a participação de artistas, obras, curadores ou pesquisadores brasileiros, mas, quando recebiam algum, era algo tímido do Itamaraty, por exemplo. Nunca houve política cultural para as artes visuais, preocupada com a divulgação da arte brasileira no exterior. O Ministério da Cultura só mais recentemente começou a se ocupar do tema, ou melhor, a falar sobre metas, programas etc. Até aqui, a política tem sido local e parece não se dar conta do caráter cosmopolita da produção brasileira. E agora tem a APEX (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) vinculada ao Ministério da Indústria e Comércio.
Valor: A engrenagem que movimenta o sistema de arte no Brasil ainda precisa passar por aperfeiçoamentos?
Mesquita: Ainda é muito pequena a circulação de artistas estrangeiros nas galerias brasileiras. É preciso comprar do estrangeiro. O comércio internacional é isso, troca, e não apenas participar das feiras de arte, vendendo seus produtos. Antes do apoio dos ministérios da Cultura e de Relações Exteriores, as galerias deveriam ser parte da agenda do ministério da Indústria e Comércio e ter uma regulamentação própria. Hoje é quase impossível, por conta de taxas e custos, importar uma obra de arte. As galerias se completariam como mediadores na circulação da produção artística contemporânea, responsáveis pelo que entra e sai no país. Neste sentido é que falo que não existe infraestrutura consolidada por aqui. E seguramente isto faria diferença, já que as coleções no Brasil tendem a ser muito parecidas, todas têm mais ou menos os mesmos artistas. É um problema de oferta.
Valor: A alta demanda por obras de artistas vivos já afeta a qualidade artística da produção?
Mesquita: Faz parte da profissionalização dos artistas perceber os jogos do mercado. Imagine um artista que, coitado, passou a vida inteira fazendo seu trabalho e, de repente, passa por um boom. Ele tem contas a pagar, família para cuidar. Os artistas hoje são mais cautelosos, percebem que é preciso controlar a sua visibilidade. O excesso pode ser fatal. Já vimos acontecer isso. (BYS)