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março 26, 2012
Máquina de ficção por Paula Alzugaray, Istoé
Máquina de ficção
Matéria de Paula Alzugaray originalmente publicada na seção de Artes Visuais da Istoé em 23 de março de 2012
Em retrospectiva no MoMA, obra de Cindy Sherman é um prato cheio para refletir sobre o que é ser mulher no século XXI
A identidade é um artifício que tem a fotografia como principal cúmplice. Estamos no mundo de Cindy Sherman, uma das artistas mais influentes de seu tempo. E, por isso mesmo, um dos poucos nomes que já tiveram a honra de ganhar, ainda em vida, uma retrospectiva na meca da arte moderna: o MoMA de Nova York. A exposição cobre a carreira da artista desde os clássicos “Untitled Film Stills”, dos anos 1970, até as obras fotográficas em formato de mural a que ela tem se dedicado desde 2010 – e que expõe pela primeira vez nos EUA nesta mostra. São 171 obras-chave para compreender sua produção.
Nestes 35 anos de carreira, Cindy Sherman flertou com o cinema, as revistas femininas, a moda, a publicidade, a psicanálise e a história da arte, mas sua maior contribuição foi protagonizar, junto de nomes como Richard Prince, Sherrie Levine e Louise Lawler, a conquista de um espaço nobre para a fotografia no cânone da arte contemporânea. Antes desse grupo de artistas que se estabeleceu nos anos 1980, a fotografia era considerada uma arte menor. Hoje, se um jovem artista trabalhando com o suporte fotográfico ganha reconhecimento e tem suas obras absorvidas pelo conservador mercado de arte, é em grande parte graças a Cindy Sherman e seus colegas da Pictures Generation (Geração Fotografia) – termo cunhado pelo crítico Douglas Crimp, em 1977.
É interessante confrontar os “Untitled Film Stills” (1977-1980), em que a artista encenava cenas de suspense ou romance cinematográfico em fotos preto e branco de dimensões modestas e efeito reticulado, com os portraits de socialites de 2008, em que senhoras de alto poder aquisitivo – o que se depreende de suas roupas sofisticadas e dos ambientes luxuosos em que são retratadas – posam para fotos de grandes dimensões que revelam em detalhe suas rugas e cirurgias estéticas. Ambas as séries são protagonizadas pela própria artista (Sherman é famosa por trabalhar sem modelo nem assistentes) e nenhuma é menos construída do que a outra. A obra da artista, aliás, é um manifesto sobre como toda fotografia é sempre fabricada. Mas o campo da ficção que cada série referencia difere radicalmente. A foto de cinema tem como motor a construção hollywoodiana da imagem feminina, ou seja, o estereótipo de mulher criado pelos filmes, a publicidade e as revistas eróticas. Já os retratos de 2008 se fundamentam na fabricação particular de uma identidade artificial pelas mulheres mais velhas, aquelas que já abandonaram a indústria dos tipos femininos para consumo.
É perturbador observar como as fotografias de socialites escancaram a busca inglória pela eterna juventude e pelo glamour algo decadente de uma realidade social igualmente efêmera. São retratos patéticos e, por isso mesmo, mais humanos, quase reais. Ao longo de sua trajetória, a artista teve sua obra cooptada por todas as teorias correntes, do pós-modernismo ao pós-estruturalismo, passando pelos discursos feministas e psicanalíticos. A psicanálise tem novamente nestas obras recentes um prato cheio para refletir sobre o que é ser uma mulher no século XXI.