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março 20, 2012
A terceira via das artes por Fabio Cypriano, Folha de São Paulo
A terceira via das artes
Matéria de Fabio Cypriano originalmente publicada no caderno Ilustrada da Folha de São Paulo em 20 de março de 2012.
Diretor do Reina Sofía, Manuel Borja-Villel, inaugura nova fase no museu, com prioridade para o universo ibero-americano
Um dos museus mais importantes da Europa, o Reina Sofía, em Madri, que tem entre suas obras-primas nada menos que o "Guernica", de Pablo Picasso (1881-1973), vem passando por uma revolução.
Desde 2008, quando Manuel Borja-Villel assumiu sua direção, o Reina ganhou uma nova e arrojada disposição para seu acervo. Pinturas valiosas de Mark Rothko (1903-1970) são exibidas ao lado de produtos da indústria cultural, no caso o filme "Janela Indiscreta" (1954), de Alfred Hitchcock (1899-1980). "Ambos são sobre visualidade", disse o diretor à Folha, numa pausa na montagem da mostra "Lygia Pape - Espaço Imantado", na Estação Pinacoteca.
Ele é um dos curadores da exposição -que chega agora ao país, após passar pelo Reina e pela londrina Serpentine no ano passado- que posiciona Pape como uma das principais artistas brasileiras.
Reunir Rothko e Hitchcock faz parte de uma das estratégias do espanhol para repensar a função do museu. No caso, ele chama essas junções de "microrrelatos".
Com isso, busca estimular novas possibilidades de leitura para o visitante. Assim, um dos grandes expoentes da arte abstrata americana do pós-Guerra, Rothko, passa a ser associado à espionagem e à Guerra Fria, temáticas presentes em "Janela Indiscreta". "É uma ruptura", diz ele.
No entanto, é não só na disposição do acervo que o Reina vem sendo transformado mas também na própria condição do colecionar.
Para o diretor, "os museus estão baseados na ideia de propriedade, de acumulação". "No mundo atual, quem recebe também dá, ou seja, o visitante pode recriar a narrativa proposta pelo curador nessas junções", explica.
PARTILHA
Para tanto, o diretor engajou o museu em três redes (organizações não centralizadas de troca de informações com pessoas ou instituições). Uma delas, chamada "Outra Institucionalidade", visa "a ruptura da dialética entre privado e público", diz ele. "Existe uma nova categoria que é a do 'comum', a ideia é que tudo volte a todos. E, como é algo novo, não há modelos."
Outra das redes apoiada pelo Reina é o site "Conceitualismos do Sul". Nele, são armazenados relatos sobre arte nos países latino-americanos. Segundo Villel, organiza-se uma "pluralidade de arquivos, em que não há um só sistema de classificação, mas muitos." Com isso, ao invés de concentrar informações, o museu as descentraliza em regime colaborativo.
A postura é contrária à do Museu de Belas Artes de Houston (EUA), por exemplo, que compra documentos de arte latino-americana.
"Entendemos o museu como depositário, um lugar que se conecta a outros", explica.
BRASILEIROS
A mostra de Lygia Pape (1927-2004), inaugurada no sábado, é apenas uma das muitas mostras de brasileiros com as quais Villel esteve envolvido. "Depois do Guy Brett [crítico e curador inglês], nos anos 1970, ele é a figura mais importante para a divulgação da arte brasileira", diz Marcelo Araújo, diretor da Pinacoteca do Estado.
Villel, quando foi diretor da Fundação Tàpies, em Barcelona, organizou grandes mostras retrospectivas de Hélio Oiticica, em 1992, e Lygia Clark, em 1996.
Foi a partir da obra deles, no entanto, que o espanhol desenvolveu sua postura crítica em relação aos museus.
"Os relatos que temos da modernidade são eurocêntricos. Por isso, para se questionar a modernidade, a interpelação tem que ser não europeia", diz. Ao conhecer as propostas de Oiticica, Clark e Pape, que se recusavam a usar termos como pop arte e minimalismo, Villel teve seu momento eureca: "Passei a me interessar pela visão estrangeira latino-americana."
No próximo ano, o museu receberá uma retrospectiva do artista Cildo Meireles, com curadoria assinada pelo português João Fernandes, que deixou o Museu de Serralves recentemente para trabalhar no Reina.
"O João inaugura uma nova fase no museu, com prioridade para o universo ibero-americano", diz Villel.
Com isso, o diretor busca uma nova vocação para o museu: "Identidade, agora, é um fluxo. E essa ideia em fluxo tem a ver com regiões muito mais amplas do que a Espanha, como o mundo ibero-americano, que inclui a península ibérica e toda a América Latina".