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março 19, 2012
O rapto do debate sobre artes visuais por César Oiticica Filho, Folha de São Paulo
O rapto do debate sobre artes visuais
Leia abaixo o texto de César Oiticica Filho originalmente publicado publicado na edição "Ilustríssima" do jornal Folha de São Paulo em 18 de março de 2012, resposta à tréplica de Flávio Moura.
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Para responder ao texto de Flávio Moura de 4/3, realizei um exercício comparativo: peguei os meus exemplares de "Aspiro ao Grande Labirinto" (1986) e "Museu É o Mundo" (2011) e tentei entender o que difere tanto, para o crítico, nas edições, tornando uma delas o exemplo de como se faz um volume de ensaios do autor e o outro um "amontoado de textos sem referência".
Não há, nos volumes, nada que justifique tal julgamento. Os dois seguem a ordem cronológica dos textos, mantendo a referência original dos documentos. A maior diferença está na quantidade dos textos: "Museu É o Mundo" se estende até 1980, enquanto o último texto de "Aspiro" é de 1969.
Além disso, foram incluídos em "Museu" alguns textos da década de 1960 ausentes no livro anterior. De resto, os critérios são bastante semelhantes.
Então, onde está essa diferença tão gritante de qualidade curatorial entre os volumes? Estaria na cabeça do crítico? Estaria ele julgando a partir de uma visão externa, preconceituosa, sem ter feito o mesmo exercício comparativo? Será que possui um exemplar do "Aspiro" para tanto? A pergunta, que pode parecer capciosa, se explica.
No texto, Flávio diz que "Aspiro ao Grande Labirinto" é organizado apenas por Luciano Figueiredo. Mas, na folha de rosto do volume, está claro: "Seleção de textos: Luciano Figueiredo, Lygia Pape, Waly Salomão".
O crítico não conhecia essa informação, absolutamente básica? Senão, que interesse ele tinha em omitir os nomes dos outros organizadores? Por que privilegiar apenas o organizador vivo?
Começo o texto dizendo isso para explicar o motivo de, novamente, responder ao crítico. Confesso que relutei, temi ser isso exatamente o que ele queria: conquistar espaço de mídia com factoides. Mas é dever de um curador preservar a boa informação sobre a obra e o respeito ao trabalho dos profissionais que a ela se voltaram. A omissão de créditos, como no caso da organização do "Aspiro", é muito grave.
No caso de "Museu É o Mundo", é importante ressaltar o investimento de todos para fazer que esse seja um dos poucos livros de exposição a chegar às livrarias do Brasil com um preço acessível --e o primeiro de Hélio Oiticica. Os demais já nascem como obras raras, inacessíveis ao grande público.
Isso não é pouco, mas não isenta o livro de críticas. O que esperamos é que elas sejam feitas de forma qualificada, por meio da leitura atenta do seu conteúdo.
DISTORÇÃO
Outro fator importante, que motivou a minha resposta, é desfazer uma distorção de sentido, realizada por Flávio Moura, da minha primeira réplica. Ao citar os novos críticos, não busquei chancelar nomes, ao contrário.
Não tenho contato pessoal com vários dos citados, mas acompanho com entusiasmo seus trabalhos, pela qualidade e relevância. Alguns deles inclusive não trabalham diretamente com a obra de Hélio Oiticica.
O que destaquei, e repito, é a necessidade de uma postura crítica séria, o que todos esses nomes e muitos outros da nova geração expressam e que não vejo no trabalho presente de Flávio Moura.
A certo ponto, Flávio Moura fala sobre o fato de eu ser sobrinho de Hélio Oiticica e da necessidade de ganhar "musculatura crítica" para falar do artista. Jamais tive essa ambição crítica.
A minha obrigação, como curador da obra, é cuidar para que as informações sobre a obra de Hélio Oiticica sejam o mais acuradas possível, evitando que erros se perpetuem.
O trabalho é árduo: é preciso acompanhar a reflexão crítica internacional, tornar informações e obras acessíveis ao maior número possível de interessados, independentemente das opiniões que possam vir dessas pessoas.
Há quase dez anos, o projeto HO entrega, para todos os pesquisadores que nos procuram, DVDs com todos os documentos de Hélio Oiticica, que podem ser acessados rapidamente por um programa de busca. Essa é uma atitude que adotamos para facilitar o acesso à informação sobre a obra de Hélio Oiticica e multiplicar as suas leituras críticas. O próprio Flávio Moura usufruiu desse serviço.
O trabalho realizado no livro "Museu É o Mundo", junto com as entrevistas de Hélio Oiticica reunidas no volume da coleção Encontros e o livro "Newyorkaises "" Conglomerados", com os textos de Oiticica realizados em Nova York na década de 1970, a sair ainda neste ano, todos em parceria com a Azougue Editorial, é uma forma de estender ainda mais o acesso à obra de Hélio Oiticica. Esperamos que criem novas leituras, instigantes, públicas e consistentes
O que preocupa, nesse sentido, é o rapto do debate sobre artes visuais, que deixou de ser um diálogo sobre as possibilidades experimentais e de linguagem para se aprisionar num discurso sobre o circuito mercadológico, tratando artistas revolucionários internacionalmente como meras commodities.
Provavelmente isso se deve a certa promiscuidade entre crítica e mercado, que a cada vez mais se intensifica, trazendo textos nos quais o valor das obras muitas vezes se sobrepõe à sua importância estética e cultural.
Bacana a sua iniciativa de contestar.
O seu texto sim, é a verdadeira crítica. Além de esclarecer a obra do artista você dá um xeque-mate no pseudo "crítico".