|
março 19, 2012
Como nascem os ícones por Flávio Moura, Folha de São Paulo
Como nascem os ícones
Matéria de Flávio Moura originalmente publicada no caderno Ilustríssima do jornal Folha de São Paulo em 29 de fevereiro de 2012
O processo de transformação de Lygia Clark e Hélio Oiticica nos ícones da arte brasileira contemporânea segue a todo vapor.
Em 2004, foram os únicos brasileiros a figurar no compêndio "Art Since 1900" (Thames and Hudson), súmula do que pensa a crítica de mais prestígio nos EUA e na Europa sobre a arte do século 20.
Em 2007, mais de 150 trabalhos de Oiticica ocuparam a londrina Tate Modern. Em 2011, a galeria Gagosian de Paris realizou pela primeira vez uma mostra com obras dos dois.
Em maio de 2014, os nova-iorquinos deverão ver no MoMA a maior retrospectiva de Lygia já feita. No Brasil, avolumam-se iniciativas nessa direção, como uma coletânea de ensaios de Oiticica e uma caixa com depoimentos sobre Lygia, ambas recém-lançadas.
"Museu É o Mundo" *[Azougue, org. Cesar Oiticica Filho, 288 págs., R$ 80]* reúne textos produzidos por Oiticica entre 1954, quando tinha 17 anos, e 1980, ano de sua morte. A maior parte é composta de entradas de seu diário, escritas entre 1960 e 1962. O restante são ensaios de cunho interpretativo, como o "Esquema Geral da Nova Objetividade", de 1965, e anotações esparsas sobre trabalhos.
O livro abriga a íntegra dos textos escolhidos para figurar na exposição homônima que percorreu o Brasil em 2010. Não se trata, por isso, de uma coletânea dos melhores ensaios de Hélio, trabalho que não é feito desde 1986, quando saiu "Aspiro ao Grande Labirinto" (Rocco, esgotado). Faltam indicações sobre o contexto de produção dos textos e dados básicos sobre eventuais publicações anteriores.
O objetivo, como diz Oiticica Filho na introdução, é ir contra os "setores conservadores da arte", que valorizam só a obra inicial de Hélio Oiticica. Em seu entender, a esses críticos falta coragem para enfatizar a qualidade da produção dos anos 1960 e 70, que "abre as portas da arte contemporânea com proposições e criações que transcendem o objeto artístico".
CONCRETISTA
Por trás da invectiva do curador contra a "crítica conservadora" há pontos relevantes. Como mostram os textos do livro, nos anos 60 Hélio passou a escrever como concretista: criava palavras, enfatizava a sonoridade, interrompia frases e exercitava jogos de linguagem que por vezes soam como caricatura do concretismo, de tanto que exploram cacoetes formais associados à corrente.
O livro evidencia como a trajetória de Oiticica é tão devedora dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos quanto de Ferreira Gullar e do neoconcretismo (1959-61). Não parece casual que o próprio Gullar, líder da dissidência, tenha desqualificado a obra de Oiticica de 1964 em diante, como se ali houvesse traição aos princípios do grupo neoconcreto.
Os textos de "Museu É o Mundo" são apresentados como parte do trabalho artístico. Encarados assim, assumem a condição de complemento às obras expostas, não de ensaios críticos. Mesmo porque por vezes as interpretações são frágeis: nos textos mais densos, do início de carreira, Oiticica emula o linguajar filosofante de Gullar.
Mais tarde, em textos como "Balanço da Cultura Brasileira 1968", procura esboçar um retrato de sua geração, mas restringe-se ao elogio narcisista da própria trajetória.
Vistos na ordem cronológica, os textos seguem um caminho que encontra expressão nas obras. O que no início eram ensaios comportados, às voltas com conceitos filosóficos, vai se decompondo em anotações, aforismos, legendas, gravações, experimentos até os "programas in progress" do fim da carreira, em que idiomas se misturam, frases não se completam, referências eruditas e à cultura de massas se avolumam e se anulam em sentidos lacunares e obscuros.
BORBOTÕES
Fruto de parceria entre o Sesc-SP e a Cinemateca Brasileira, *"Arquivo para uma Obra-Acontecimento" [org. Suely Rolnik, 20 DVDs, R$ 240]*, assim como o livro de Oiticica, deriva de uma exposição. A caixa reúne parte dos depoimentos colhidos para uma exposição de 2006 e foi lançada em mostra homônima em São Paulo, em 2011.
O time de convidados -20, no total- é heterogêneo: Caetano Veloso, Ferreira Gullar, Jards Macalé e os críticos Guy Brett e Yve-Alain Bois, entre outros.
Caetano narra a experiência de ter sido paciente da terapeuta Lygia, em quem se inspirou para compor "If You Hold a Stone", canção incluída em seu álbum de 1971. Gullar discorre sobre o "não-objeto", conceito criado a partir de obras da artista, e o papel de Lygia para os neoconcretos. Alain-Bois fala dos gostos cinematográficos e da rotina parisiense da artista.
E tome hagiografia: embora o texto de apresentação insista na necessidade de evitar o fetiche, abundam nos depoimentos afirmações como a do curador Paulo Herkenhoff, para quem a relação entre Lygia e Oiticica "era da mesma natureza da que havia entre Picasso e Braque em 1910".
Há na apresentação a tentativa de justificar a importância do formato "arquivo" (os DVDs vêm dispostos numa caixa que sugere um arquivo de pastas suspensas), mas a opção pelos depoimentos na íntegra é difícil de compreender.
São cerca de 40 horas de entrevistas, o que torna penosa a busca por momentos relevantes. É uma pesquisa respeitável para um futuro documentário, mas o espectador não especializado que se aventure por ali ficará perdido: o crítico Guy Brett, por exemplo, é lacônico a ponto de constranger, e não se compreende por que os silêncios e hesitações foram mantidos.
Como no livro de Oiticica, também esses depoimentos buscam valorizar trabalhos produzidos a partir dos anos 60, quando a experiência sensorial assume a dianteira em relação às preocupações formais. O alvo é igualmente a crítica "conservadora", que duvida da qualidade dessas obras.
Trabalhos como os "Objetos Relacionais", feitos de pedras, sacos e outros materiais sobre o corpo das pessoas, negam o objeto artístico e enfatizam a experiência de quem os vivencia. É essa fase, impossível de ser reproduzida em museu, que o arquivo focaliza.
CONVENCIONAL
Pelo avesso, os depoimentos revelam da parte da própria Lygia uma concepção de arte convencional. A questão a permear as conversas é a fronteira entre arte e terapia.
Até que ponto há valor estético nessa produção tardia? O que autoriza tomá-la como arte, e não como derivação do tratamento psicanalítico?
Parte significativa do esforço de críticos e curadores, dos anos 90 para cá, tem sido encontrar conceitos ampliados de arte para acolher essa produção, não raro com malabarismos retóricos que pedem socorro a Deleuze, Guattari ou ao filósofo da moda mais à mão.
Há registros da artista, contudo, em que a questão aparece em termos mais pedestres: a arte, no início da carreira, era compensação para frustrações. Em 1963, ela anotou no diário: "Eu que fiz uma análise que durou anos só para virar mulher e ser mais gente sempre dizia que se com isto a minha arte desaparecesse eu preferia ser uma pessoa autêntica a ser um artista que compensasse sua frustração através da criação artística. Ficou provado que sou artista mesmo".
O sucesso do tratamento implicaria o abandono da condição de artista. A "pessoa autêntica", integrada ao papel de mulher e mãe, não pode viver com a arte, que aparece como compensação para um estado permanente de frustração. É como se integração social e realização pessoal significassem uma morte simbólica, pois com isso morreria a forma de relação com a arte que cultivou publicamente.
"Ficou provado que sou artista mesmo." Essa concepção de arte é de forte carga romântica. O artista só existe como fruto do desajuste. As faíscas entre essa noção de arte convencional e uma trajetória que tem início no construtivismo -que pressupõe o apagamento da subjetividade e das veleidades do indivíduo- definem a forma como a equação entre "arte" e "vida" aparece na trajetória de Lygia.
TORTUOSO
O caminho que leva Lygia Clark e Hélio Oiticica da condição de jovens herdeiros do construtivismo a figuras exemplares da arte brasileira é tortuoso.
É preciso ter em conta a participação de ambos no grupo neoconcreto. Esse é o ponto de partida para uma aura de vanguarda que recai sobre os dois e dá a senha para as inovações posteriores. O grupo tem os ingredientes necessários -os manifestos, as palavras de ordem, a cobertura crítica e institucional- para constituir um momento de origem de fácil catalogação e que, a partir do material teórico a ele associado, produzido pelos próprios integrantes, entrega as chaves para sua decifração.
Ambos tiveram condições materiais de atuar como "artistas puros", sem necessidade de se empregar no mercado: o mesmo não ocorreu com muitos artistas associados à arte construtiva, sobretudo em São Paulo, que acabaram estigmatizados por unir arte e "indústria".
Some-se a isso o contato com críticos estrangeiros, a vivência nos EUA e Europa, a atuação do Projeto Hélio Oiticica no direcionamento das interpretações sobre a obra do artista, a valorização politicamente correta da arte em países emergentes por parte das universidades americanas e europeias, e, por fim, o bom momento da economia brasileira, impulsionando vendas de obras em feiras de arte pelo mundo, e se tem um esquema do processo em curso de canonização dos dois nomes.
Vale reter as palavras do crítico Paulo Venâncio Filho, também convidado para a série de depoimentos sobre Lygia Clark: "Vou a debates no exterior e a leitura que está se cristalizando é que a arte brasileira depois dos anos 60 só se deve ao Hélio e à Lygia. É preciso colocar isso em questão".
Só mesmo dois artistas da envergadura de Oiticica e Clark para reavivar tanto palavrório. O texto do caro jornalista, em vez de passar a régua no assunto - como supõe fazer - na verdade acende inúmeras fagulhas sobre a relação entre arte e meios social brasileiro desde meados da década de 50. Destruam as obras, leitores, vamos à vida!
Posted by: Felipe Tonelli at março 31, 2012 8:28 PM