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março 5, 2012
Anatomia barroca por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Anatomia barroca
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 3 de março de 2012.
Novo estudo mostra que Caravaggio fez versão anterior, com esboços preparatórios, da célebre Medusa
Do hábito de assistir a execuções públicas em Roma, Caravaggio desenvolveu sua habilidade assombrosa para retratar cabeças decepadas.
Mas uma nova decapitada tem roubado a cena desde que foi anunciada na semana passada na Itália. Aquilo que pensavam ser uma cópia da célebre Medusa que o artista pintou sobre um escudo é, na verdade, a primeira versão, também dele, da obra que hoje está em Florença.
Na Galleria degli Uffizi, na cidade que foi epicentro do Renascimento, o rosto desesperado da mulher de cabelos de serpente sempre foi um sucesso de público, estando entre as 25 obras mais importantes do palácio onde mora também a Vênus de Botticelli.
Agora, especialistas debatem o impacto da versão recém-descoberta. Enquanto o escudo do Uffizi data de 1600, dez anos antes da morte de Caravaggio, aos 38 anos, a nova Medusa é de 1596.
"Ele não largava esse escudo, dormia com isso debaixo da cama", conta Samanta Angelone, uma das pesquisadoras da primeira versão da obra. "Depois é que ele fez a cópia que foi parar no Uffizi."
Ao contrário da Medusa conhecida até hoje, a primeira versão esconde por baixo da pintura um raro desenho preparatório do artista -Caravaggio, que pertencia à escola veneziana de pintura, não costumava fazer esboços e pintava direto sobre a tela.
Nesse caso, especialistas sustentam que o mestre do barroco tenha feito esse desenho inicial pela dificuldade em trabalhar sobre a superfície convexa do escudo.
Seguindo o mito grego, Caravaggio retratou a Medusa sobre a arma porque Perseu, que derrotou o monstro, usou depois sua cabeça presa ao escudo para transformar inimigos em pedra -um dos poderes daquela mulher capaz de congelar com o olhar.
Tentando garantir a eficácia desses olhos, Caravaggio chegou a esboçar quatro versões deles no estudo, escondidas debaixo da tinta. Radiografias dessa nova Medusa também mostram três posições diferentes para o nariz e outras quatro para a boca.
"Essa Medusa é um protótipo da outra, com cerca de 20 desenhos preparatórios", conta a historiadora italiana Federica Gasparrini. "Só depois de superar as dificuldades da primeira é que ele executou a segunda versão."
Exames da Medusa já conhecida mostram que não há estudos ou esboços por baixo da tinta, o que sempre intrigou especialistas, já que o traço contínuo e sem falhas da obra parece ter sido feito sem muito esforço e na primeira tentativa do artista.
Uma extensa análise da nova Medusa agora indica que aquele desenho inicial do primeiro escudo foi transposto pelo artista para uma chapa de vidro e projetado sobre o segundo escudo com uma fonte luminosa, o que permitiu que ele pintasse direto sobre o suporte da réplica.
"Não há, na versão do Uffizi, nenhum sinal ou indício de que ele tenha feito uma cópia ali", diz Gasparrini. "Não aparecem nem mesmo as incisões na tinta que ele costumava fazer com a ponta do pincel, o que reforça a hipótese dessa cópia ter sido executada a partir das sombras."
Nisso, Caravaggio teve a ajuda provável do cardeal Francesco del Monte, seu mecenas, que se dividia entre a religião e estudos de alquimia, matemática e geometria.
Segundo estudiosos, Del Monte, que encomendou a segunda versão da Medusa para presentear o nobre florentino Ferdinando dei Medici, ensinou o artista a usar luz e sombra para fazer a cópia.
DESESPERO E DOÇURA
Mas mesmo com todo o esmero técnico, não são idênticas as duas Medusas. Caravaggio, que usou o próprio rosto como modelo para suas feições, fez mudanças e correções na expressão do monstro ao transpor a obra.
Enquanto a versão descoberta agora traz um olhar exasperado, mais austero e masculino, a Medusa do Uffizi é mais doce e feminina.
"Na primeira, ele faz uma advertência em nome da razão e da ciência, como se apontasse para as armadilhas da paixão", analisa Gasparrini. "A segunda fala da mulher como tentação, uma referência à virtude moral e militar, que não pode se render às tentações da carne."
Mas essa é uma comparação que ficará para os livros, já que o Uffizi descarta expor as duas Medusas juntas.
"Não é a primeira vez que descobrem uma cópia ou versão que seria mais bela e mais original do que a antiga", diz Antonio Natali, diretor do Uffizi. "Estudiosos têm o direito de achar o que quiserem, mas, se fôssemos expor tudo que descobrem aqui, o museu viraria uma feira."
Masp quer Medusa em exposição
Enquanto especialistas na Itália se digladiam sobre o real significado da nova Medusa, o Masp tem ampliado negociações para trazer ao país a Medusa clássica, do Uffizi de Florença. Teixeira Coelho, curador do museu paulistano, afirma que já estão confirmadas telas importantes do artista, como "Narciso na Fonte", na mostra dedicada ao mestre barroco marcada para junho deste ano. Mas Antonio Natali, diretor do Uffizi, diz que a Medusa não está autorizada a sair da Itália.