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fevereiro 25, 2012
Condenada por inadimplência, a Bienal de Arte pode ser cancelada, O Globo Online
Condenada por inadimplência, a Bienal de Arte pode ser cancelada
Matéria originalmente publicada no caderno Cultura do jornal O Globo Online, em 24 de fevereiro de 2012.
Principal mostra do país precisa fazer acordo com o governo em 20 dias
SÃO PAULO - Numa corrida contra o tempo, o destino da Bienal Internacional de Arte de São Paulo será definido em 15 de março. Se até lá as contas da Fundação Bienal continuarem bloqueadas por inadimplência, a instituição começará a desmobilizar a equipe convidada a realizar sua 30 edição, prevista para setembro, dispensando curadores e artistas. Ontem haveria uma reunião em Brasília entre a Advocacia Geral da União (AGU) e representantes da Bienal para tentar encontrar uma solução ao impasse que desde janeiro ameaça uma das mais importantes mostras de arte contemporânea do mundo, ao lado da Documenta de Kassel e da Bienal de Veneza.
— Se a Bienal não se realizar, será um atentado à imagem da arte brasileira. Como um país que vai organizar uma Copa do Mundo e as Olimpíadas não consegue sequer realizar uma Bienal? — questiona José Roberto Teixeira Coelho, crítico de arte e curador do Masp.
Após a crise institucional que resultou na "Bienal do vazio", em 2008, uma nova gestão, liderada pelo consultor Heitor Martins, assumiu a Fundação Bienal à beira da falência, com um discurso de transparência e restauração. A próxima edição, com um orçamento de R$ 30 milhões aprovado pelo MinC, começou a ser planejada há dois anos, quando o curador venezuelano Luis Pérez-Oramas foi escolhido e começou a trabalhar com sua equipe curatorial, formada por Andre Severo, Tobi Maier e Isabela Villanueva.
150 colaboradores dispensados
O bloqueio realizado pelo Ministério da Cultura em 2 de janeiro, por recomendação da Controladoria Geral da União (CGU), incide sobre R$ 12 milhões captados via lei Rouanet para a realização da mostra deste ano. Também impede que a fundação capte outros R$ 8 milhões já comprometidos por empresas, também via incentivo fiscal. Outros R$ 5 milhões captados sem lei Rouanet estão livres, mas o valor é insuficiente para a realização da Bienal, que custa no mínimo R$ 18 milhões. A equipe de 150 pessoas contratada pelo programa educativo da Bienal já foi dispensada. O grupo trabalha na formação de monitores e professores, que são capacitados a preparar estudantes antes da visita à mostra e realizar debates depois.
A decisão do MinC de acatar a recomendação da CGU de listar a Bienal como inadimplente causa polêmica entre artistas, curadores, galeristas e gestores culturais, pois ameaça não só a realização desta edição da exposição — a que comemoraria seus 60 anos — mas sua existência. O relatório apresentado pela CGU ao ministério aponta irregularidades em 13 prestações de contas ocorridas entre 1999 e 2006, somando quase R$ 33 milhões. A CGU pode levar de dez a 15 anos para concluir se houve ou não desvios de verba. Se a Bienal continuar a ser considerada inadimplente durante as investigações, ela será impedida de captar novos recursos ou fazer convênios com o governo.
— A Bienal é um jogo ganho, mas o Brasil é um país autodestrutivo. Tem a capacidade de desfazer o que já conquistou — lamenta o artista plástico Nuno Ramos. — Neste momento de restauração de uma dinâmica digna, vem essa bomba relativa a dívidas de gestões anteriores. É trágico e fere um esforço louvável.
O bloqueio das contas pegou a equipe da Bienal de surpresa. A fundação vinha apresentando à CGU documentos e esclarecimentos, conforme solicitados pela auditoria, e mantendo diálogo constante com o MinC. A instituição já havia assinado em 2011 um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) e devolveu ao ministério R$ 700 mil usados para consertar parte do teto do prédio. A obra foi considerada irregular pelo CGU, pois foi feita sem licitação.
Após ser listada como inadimplente, a Bienal entrou na Justiça contra a decisão do MinC, pedindo o desbloqueio urgente das contas para evitar o adiamento da mostra. O pedido de liminar foi negado pela Justiça Federal. Novo recurso está sendo analisado pelo Tribunal Regional Federal de São Paulo, mas é pouco provável que a fundação consiga a liberação dos recursos pela via judicial. A saída para que a mostra seja realizada na data prevista depende de uma negociação entre Bienal, MinC, CGU, Tribunal de Contas da União (TCU) e os ministérios públicos federal e estadual. Representantes de cada uma destas partes precisam chegar a um acordo e assinar um novo Termo de Ajuste de Conduta (TAC). A reunião de ontem em Brasília discutiria os termos iniciais deste documento. Caso as negociações se prolonguem, repassar os recursos já captados pela Bienal para outra instituição que esteja adimplente frente ao MinC seria uma solução temporária capaz de viabilizar sua realização.
— Tanto a realização da Bienal quanto a prestação de contas são de interesse público. Caberia ao ministério encontrar uma solução negociada, capaz de evitar o fim da Bienal e de recuperar dinheiro, se forem comprovados desvios — defende Nuno Ramos.
Procurado, o MinC não quis se pronunciar, alegando que o processo, transformado em Tomada de Contas Especial (TCE), é responsabilidade do TCU.
Num momento em que a arte brasileira ganha reconhecimento internacional, a 30 Bienal de São Paulo é um evento que está na agenda de curadores, colecionadores e galeristas de todo o mundo. Além de ser uma vitrine importante para o Brasil e para a produção latino-americana, a exposição aproxima a vanguarda das artes visuais do grande público e gera reflexões e debates que movimentam a cena contemporânea.
— Trata-se de uma instituição com um capital de realização poderoso. Poucas instituições brasileiras têm a mesma força, o mesmo espaço expositivo e a mesma marca histórica — avalia Teixeira Coelho, curador do Masp e crítico de arte.
Para o diretor artístico da galeria Vermelho, Eduardo Brandão, a importância da Bienal é o que a faz superar as crises e continuar a ser realizada.
— Esta não é a primeira Bienal que tem problemas. O cancelamento da mostra é uma hipótese muito remota, não só pela importância mas pela capacidade da gestão atual, que conseguiu sair de uma quase falência, levantou recursos e realizou uma excelente exposição em 2010 — lembra Brandão.
Não é a primeira vez que a Bienal vê sua existência ameaçada. Desde 1991, a instituição passa por altos e baixos, alternando momentos de crise institucional com o debate sobre seu papel na atualidade.
— A Bienal é um marco na arte brasileira contemporânea, que deve a ela muito de seu processo de internacionalização. Mas hoje nos perguntamos qual a diferença de uma Bienal e uma grande feira de arte — questiona a historiadora e crítica de arte Aracy Amaral.
Para o artista plástico Nuno Ramos, a importância da Bienal é indiscutível.
— A Bienal é o momento no qual as artes plásticas brasileiras se tornam públicas e artistas de ponta alcançam uma dimensão de público mais ampla. É uma dessas coisas que nos dá orgulho, que mobiliza forças culturais — acredita o artista, que em 2010 expôs na 29 Bienal a instalação "Bandeira branca", que continha dois urubus vivos que foram apreendidos, causando polêmica e atraindo a atenção do público.
Bienal adiada em 1993 e 2000
O risco de a Bienal terminar existe, acredita Ramos, discordando do diretor artístico da galeria Vermelho.
— É notável nossa incapacidade de criar ou manter algo contínuo e duradouro — afirma, lembrando que a Bienal foi adiada em 1993 e em 2000.
Críticos e curadores que sugerem que a Bienal repense seu papel acreditam que a instituição ganharia mais estabilidade ao investir na formação de artistas, oferecendo bolsas-residência. Também defendem o uso do prédio de Oscar Niemeyer com maior frequência para exposições intermediárias, como a mostra de 2011 "Em nome dos artistas", e o investimento na formação de um acervo formado pelas obras inéditas criadas por artistas convidados.
— A Bienal de Veneza existe basicamente nos mesmos moldes da de São Paulo e não vejo muitas cobranças para que ela se reinvente. Quem pede transformações à Bienal de São Paulo está, na verdade, cobrando uma redefinição de todo o sistema da arte no Brasil, que está em frangalhos. A maior parte dos museus e instituições culturais brasileiros vive à beira da falência todo mês — rebate Teixeira Coelho. — Quando um banco está à beira da falência ou sob suspeita, o poder público se mobiliza para salvá-lo. Da mesma forma, o problema da Bienal é um problema do Brasil e cabe a todos, poder público, iniciativa privada e sociedade civil, encontrar uma solução negociada para este impasse.